Não nos atirem mais fumo para os olhos

A mera hipótese de que não haja responsáveis concretos pela tragédia, e de que tudo não tenha passado de uma lamentável maldade da mãe natureza, é um absurdo.

Deixemo-nos de sonsices. A não ser que em Pedrógão Grande tenha acontecido um fenómeno meteorológico nunca antes visto no planeta Terra – a combustão espontânea e simultânea de duas fileiras de eucaliptos e de duas dezenas de carros –, é evidente, absolutamente óbvio e totalmente cristalino que a morte daquelas 47 pessoas tem responsáveis e que ela representa uma falha gravíssima do Estado para com os seus cidadãos.

Quem são os principais responsáveis por essa falha, ainda não sabemos. Talvez a GNR. Talvez os bombeiros. Talvez a falta de coordenação da Protecção Civil. Talvez a falência do SIRESP. Talvez tudo em simultâneo. Mas se é cedo para dar resposta definitiva a estas dúvidas, já é mais do que tempo para termos esta certeza: a mera hipótese de que não haja responsáveis concretos pela tragédia, e de que tudo não tenha passado de uma lamentável maldade da mãe natureza, é um absurdo, uma inadmissível ofensa à memória de quem foi vítima da mais horrível das mortes, e é tratar por estúpido qualquer português que tenha dois olhos na cara e três neurónios a funcionar.

Quando vemos as imagens dos carros carbonizados e colados uns aos outros, significando que nenhum condutor estava a ver um palmo à frente do nariz; quando vemos a poucos metros da EN236-1 passar o IC8, muito mais largo e arejado, e que estava encerrado ao trânsito; quando vemos que o fogo começou antes das três da tarde e que estas pessoas terão morrido queimadas nos seus carros quatro horas depois; quando vemos tudo isto, não podemos engolir a postura dos paninhos quentes, dos dias de luto passados em pesaroso silêncio ou a reverência acabrunhada dos “afectos”.

Apoiar emocionalmente as pessoas é fantástico. Usar os abraços para desculpar a incompetência é obsceno. É uma vergonha o discurso de Marcelo na noite de sábado (“o que se fez foi o máximo que se poderia ter feito”; “não há nem falta de competência, nem de capacidade, nem de imediata resposta”). É uma vergonha ver os responsáveis pelos bombeiros e pela Protecção Civil andarem a fazer tudo o que podem para desvalorizar a ocorrência de falhas graves e de falta de coordenação. É uma vergonha que se confunda o esforço e a comoção dos vários intervenientes com a competência no desempenho das suas funções.

Eu cheguei a ouvir o secretário de Estado da Administração Interna comentar o facto de ele próprio ter salvo a família num incêndio em sua casa na década de 80. Acho óptimo. Mas esse episódio, tal como a eterna presença da ministra da Administração Interna de jaqueta laranja e sapatos ténis, é irrelevante. Mais: tanta presença ministerial cheira a tentativa de controlo político dos danos, mantendo uma vigilância permanente sobre quem deveria estar concentrado a combater o fogo – ou os assaltos, já agora, porque à subvalorização inicial da violência do incêndio seguiu-se a sobrevalorização do seu perigo, evacuando-se dezenas e dezenas de aldeias que foram pasto para assaltantes.

Uma semana depois, já sabemos muito – e o que sabemos não é bom. Tudo indica que a gestão inicial do incêndio tenha sido desastrosa e caótica. E esse caos, nem bombeiros, nem GNR, nem Protecção Civil, nem o Governo, vão ter interesse que seja conhecido na sua inteira extensão. Compete-nos lutar pela verdade. Saber o que realmente se passou na tarde do dia 17 de Junho de 2017 é a dívida que todos temos para com 64 pessoas que foram abandonadas pelo Estado português no momento em que mais precisavam dele.

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