“Este entendimento” de esquerda “era necessário para derrubar o Governo de Passos”

Se o PS ganhar as próximas legislativas haverá menor pressão política e parlamentar do que há quase dois anos para uma aliança de esquerda, afirma Carlos Jalali. Mas o investigador admite que a decisão dependerá do “papel dos líderes".

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Carlos Jalali analisou as consequências da aliança de esquerda no sistema político Adriano Miranda

Quando se assinalam seis anos da realização das eleições que levaram à constituição do Governo PSD-CDS (eleito a 5 de Junho de 2011) liderado por Passos Coelho, que teve a responsabilidade de gerir o programa de intervenção da troika, Carlos Jalali, investigador de ciência política e professor da Universidade de Aveiro, explica que o programa de resgate não fez aumentar o populismo em Portugal, ao contrário do que aconteceu noutros países.

No livro Partidos e Sistemas Partidários, agora editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, Jalali conclui que o actual Governo minoritário do PS, apoiado por uma maioria de esquerda, inovou na governação, mas não alterou o sistema político, porque BE, PCP e Partido Ecologista Os Verdes (PEV) não se sentam no Conselho de Ministros.

Caracteriza no livro a aliança de esquerda como uma inovação no padrão político-parlamentar. Até que ponto vai essa inovação?
A inovação prende-se com a inclusão dos partidos à esquerda do PS nos processos de governação, algo que até agora não tinha acontecido. O exemplo mais flagrante é olharmos para os padrões de votação dos orçamentos do Estado (OE), que são o instrumento central de governação em Portugal. Até 2015, tanto o PCP como o BE votaram sistematicamente contra os OE apresentados por qualquer Governo. A única excepção foi o primeiro, em 1976, em que o PCP se absteve. É uma mudança relevante, mas ainda não se reflecte na dinâmica tipicamente usada para caracterizar os sistemas políticos. Mas isso é talvez uma falha na forma como a ciência política olha para os sistemas políticos, focando a análise na composição dos governos.

Portanto, como o PCP e o BE não se sentam no Governo, não se pode tecnicamente dizer que o sistema político mudou?
Não, numa certa definição de sistema político que se foca no grau de inovação, familiaridade e abertura na composição de governos. Nesses termos, este Governo PS é minoritário, como muitos outros que já tivemos. A diferença está precisamente nesta relação parlamentar, que tem implicações a nível do sistema partidário.

É admissível prever que, com uma nova maioria de esquerda, o PCP e o BE possam vir a sentar-se no Governo?
Essa é a grande questão. É importante notar que este entendimento parlamentar que temos resulta de uma configuração no Parlamento muito particular, em que, pela primeira vez, a lista mais votada não é do bloco político que tem a maioria. A lista mais votada é a PàF [coligação do PSD-CDS], o PSD tem o maior grupo parlamentar, mas a maioria é composta pelos partidos de esquerda. Essa configuração induziu esta cooperação.
Só juntos podiam derrotar o outro Governo.

Exactamente. Imaginemos que a votação era mais ou menos esta, mas o partido mais votado e o maior grupo parlamentar era o do PS. Haveria este entendimento à esquerda?
Não sabemos. Mas haveria muito menos incentivos para ele existir, porque este entendimento era necessário para derrubar o Governo de Passos Coelho nomeado por Cavaco Silva. Enquanto num cenário de vitória do PS, Cavaco Silva, seguindo a lógica presidencial, indigitaria António Costa em primeiro lugar. Por outro lado, olhando historicamente para os partidos à esquerda do PS, nomeadamente o PCP, sempre que foi confrontado com esta posição de ceder para impedir uma vitória da direita ou manter a sua oposição histórica ao PS, tem cedido. Veja-se as presidenciais de 1986, o dilema era não dizer nada e correr o risco de Freitas do Amaral ganhar ou “engolir o sapo” de apoiar Mário Soares para impedir a vitória da direita.

Se o PS ganhar, não é tão fácil renovar esta situação?
Há uma menor pressão estrutural em termos de aritmética parlamentar. Agora, aqui também entra em jogo o papel dos líderes políticos. Vai ser vital perceber o discurso e o tipo de acção que António Costa, Jerónimo de Sousa e Catarina Martins vão assumir. E também a pressão do histórico actual, o peso dos militantes e as expectativas dos eleitores.

Refere no livro o facto de o PS e o PSD juntos terem baixado a percentagem eleitoral e de não terem vingado eleitoralmente novos partidos. Salienta também o facto de a intervenção da troika não ter em Portugal suscitado fenómenos populistas. Pode dizer-se que estamos imunes ao populismo?
O sistema partidário português é o mais resiliente entre aqueles que tiveram resgate, mesmo a nível europeu, quando o comparamos com França, Holanda e com o que se avizinha na Alemanha. Continua a ser previsível, ao contrário de muitos outros, quais são os partidos que vão definir as escolhas de governo. Mas há duas notas importantes a frisar. A primeira é que há uma queda importante de votação conjunta do PS e do PSD nos últimos dez anos. Entre as legislativas de 1987 e as de 2005, a votação dos dois rondava os 75% a 80%, e quando isso acontece é mais fácil um deles ter uma maioria absoluta ou quase. Foi isso que vimos. Desde 2009, a votação PS e PSD ronda 60% a 65%, não só nas legislativas mas também nas europeias e nas autárquicas. Isso dificulta a maioria absoluta.

Mas mesmo assim não há populismo...
Não estamos imunes ao populismo. Penso que os eleitores mostram alguma insatisfação com o sistema partidário, que se reflecte no aumento da abstenção e no crescimento de votos brancos e nulos. Mas essa insatisfação ainda não é mobilizada por nenhum partido. A explicação óbvia é que, ao contrário do que se passou noutros países, não surgiu em Portugal nenhuma alternativa que os eleitores considerassem viável e credível. A minha hipótese para explicar isso é que o nível de desconfiança interpessoal e o nível de desconfiança em relação aos partidos é alto e isso leva a que novas formações políticas sejam vistas à partida com desconfiança.

O seu livro analisa o papel estruturante dos partidos nas democracias liberais, mas eles estão em transformação. Será possível virem a acabar enquanto estruturas de representação?
Esse é o debate interessante que está a ocorrer na literatura [sobre ciência política], e alguns autores dizem que os partidos se tornaram uma espécie de utilidade pública, algo que o Estado deve fornecer para haver democracia. A relação que estabelecem é a do peso crescente do financiamento público aos partidos e também a regulação pública do funcionamento interno dos partidos.

Mas será possível os partidos serem substituídos por outro tipo de estruturas de representação?
O interessante aqui é notarmos que podemos ter estruturas que são formalmente partidos mas que já não são os partidos como nós os conhecemos. Citemos o exemplo mais antigo, o caso da Forza Italia, de Silvio Berlusconi. Formalmente é um partido, mas quando nasceu era um movimento e tinha uma ligação empresarial muito forte. Veja-se outros exemplos de partidos que se estruturaram à volta de um determinado líder e que são partidos personalistas.

Com o caso do partido formado por Emmanuel Macron?
É um excelente exemplo. Depois temos também partidos-movimentos, que procuram ter uma ligação societal, mas já não é a mesma dos partidos de massas. É o caso do Podemos [em Espanha]. Todos eles são partidos, mas serão os partidos como os imaginávamos? Não.

Qual a relação dessa mudança com a adopção de métodos como as eleições primárias, dando voto aos eleitores para decidirem sobre opções estratégicas que antes cabiam exclusivamente aos militantes?
A introdução dessas dinâmicas é de certa forma o reflexo desse esvaziamento da estrutura organizacional dos partidos. Acontece à medida que a estrutura organizacional se dilui, porque as lideranças prestam menos atenção à estrutura de base dos partidos, porque precisam menos dela para fazer campanha.

Têm a comunicação social e a Internet.
Exactamente, e têm as empresas privadas para colarem cartazes. À medida que os próprios militantes se afastam, este tipo de mecanismo é uma espécie de resposta de tentativa de envolvimento societal mais amplo, mas que muitas vezes “curto-circuita” ainda mais a estrutura organizacional e reforça paradoxalmente ainda mais as lideranças centrais. Quem vai ganhar as eleições primárias? Quem tem mais visibilidade, mais recursos pessoais dentro da estrutura do partido. Essas dinâmicas visam mitigar este efeito da perda de base organizacional dos partidos, mas acabam por acelerar essa erosão e porventura mutação.

Na americanização do sistema partidário em curso na Europa, os partidos vão continuar a ter militantes? Para quê?
Vão precisar sempre de ter militantes para apresentarem as listas de candidatos e para terem um número suficiente de candidatos. Veja-se as eleições autárquicas, que são um desafio sempre enorme mesmo para os maiores partidos. Até porque os independentes em listas partidárias não chegam e geram um problema, que é a questão da lealdade às lideranças partidárias. Os partidos precisam de uma boa base de fornecimento de quadros para poderem simplesmente concorrer. Nesse aspecto, vão continuar a precisar de militantes. Já não são é militantes de base. As estruturas partidárias hoje são constituídas por aqueles que ocupam ou concorrem a cargos.

Salienta a importância de participação política e cívica para lá da militância partidária. Qual é então o papel dos cidadãos eleitores?
Esse é um debate que devemos aprofundar em Portugal. Se é verdade que não há democracia sem partidos, também é verdade que não há democracia só com partidos. Os processos democráticos requerem partidos mas não são canalizáveis unicamente por eles. Uma participação cívica mais ampla é algo que reforça a qualidade da democracia. Gera a percepção junto das pessoas, sobretudo dos mais jovens, de que a sua acção pode ter consequências na vida colectiva. Gerando essa maior participação, o sistema partidário também beneficia, porque um sistema partidário fechado para dentro propicia formas perniciosas que, no limite, chegam ao clientelismo.

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