Último refugiado yazidi em Portugal pede asilo rápido: “Um dia é como um ano para mim”

Saman Ali, 34 anos, diz que esperar pelo estatuto de refugiado é como estar "na prisão". Não pode trabalhar, nem viajar, nem abrir uma conta bancária. Por isso, escreveu a Marcelo Rebelo de Sousa.

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Nelson Garrido
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À caixa de correio da pequena casa perdida numa rua de Azurém, a cerca de 15 minutos a pé do centro de Guimarães, apenas chegam folhetos publicitários. Saman Ali olha, esperançoso, para o recipiente impecavelmente pintado. Está quase sempre vazio. “Só recebo anúncios”, suspira o único refugiado yazidi que ainda está no país daquele que foi o primeiro grupo a chegar a Guimarães ao abrigo de um programa de recolocação, em Março.

Quando aterrou no aeroporto de Lisboa com mais seis famílias yazidis, de origem iraquiana, as câmaras de televisão fixaram-se todas nele. Era o único que vinha sozinho e exibia um cartaz em que se lia “Thanks Portugal. I love you”. Agora, prefere não ser identificado. Do grupo de 24 membros desta comunidade religiosa, apenas resta ele. Os outros abalaram poucos dias após a chegada: “Foram para vários países, como a Alemanha, têm lá muitos familiares.”

O que pode um ex-professor com 34 anos, um mestrado em Biologia e um currículo de fazer inveja a qualquer europeu fazer nos arredores de Guimarães? Passa os dias a aprender a falar português — “tenho aulas três vezes por semana” —,  a deambular a pé pelas imediações — “não posso viajar sem permissão das autoridades” —, e a pensar com apreensão no futuro.

O presente não passa de uma espera e o passado é para esquecer. “Não sei o que aconteceu à minha família, pai, mãe, dois irmãos e duas irmãs”, explica. Desde que os deixou em Sanjir, cidade natal, para ir estudar para Kirkuk, nunca mais os viu. Acredita que todos morreram, mas tem receio de saber, não quer falar disso, sequer.  E tem medo. Tanto, que pede para ser fotografado de forma a não ser reconhecido, apesar de a sua foto já ter aparecido em todos os jornais.

Uma minoria religiosa de origem curda, os yazidis têm sido alvo há séculos de brutal perseguição, que nos últimos anos se acentuou, com renovado empenho, pelos apoiantes do autoproclamado Estado Islâmico (Daesh). Solteiro, Saman fez a pé e de carro o arriscado percurso do Iraque até à Turquia e, dali, até à Grécia, onde viveu em campos de refugiados e residências de acolhimento. 

Quando lhe pediram a lista de países que preferia para viver na Europa, não escolheu Portugal. “Optei por França [fala francês e inglês, além de persa, árabe e italiano], Luxemburgo, Suíça, Irlanda”, enumera. “Desculpem, mas não tinha informação sobre Portugal, a língua parecia difícil.” Agora, Portugal é o país de eleição: “É seguro, é livre, pacífico, são todos simpáticos.”

Há cerca de dois meses a aguardar pelo reconhecimento do estatuto de refugiado, começa, porém, a desesperar: “Um dia para mim é como um ano. O tempo é muito importante para mim.”

Processo n.º 1700/2016

Tinha autorização de residência até esta sexta-feira, que foi prorrogada até à próxima quarta. Nesse dia, pelas 9h00, deve apresentar-se no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) de Viana do Castelo para recolha de “dados biométricos”. Não entende por que vai de novo ao SEF. Mostra a declaração comprovativa da apresentação do "pedido de protecção internacional" do Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF. A declaração do processo n.º 1700/2016 atesta que pediu protecção internacional em 6 de Março e autoriza-o a permanecer temporariamente em território nacional.

Em Portugal não pode exercer actividade remunerada, não pode viajar, não pode abrir uma conta bancária. Com direito a assistência médica, acesso a ensino e apoio para alojamento e alimentação, agradece efusivamente toda a ajuda dada — a casa foi-lhe cedida pela autarquia, recebe 150 euros por mês —, mas não se cansa de repetir que aguarda com ansiedade o desfecho do processo burocrático.

Saman é um dos mais de 1200 refugiados que chegaram ao país vindos da Grécia e Itália no último ano e meio. Até à semana passada, apenas 64 tinham obtido o estatuto de protecção internacional, segundo os últimos dados do SEF. 

Foi justamente a apreensão por uma espera “interminável” que levou Saman a pedir ajuda ao Presidente da República, que tem observado, no seu aparelho de televisão, a desdobrar-se em beijos e abraços, declarações de solidariedade. “É muito activo, foi professor, é um gentleman.”

Passa os dias e as noites a sonhar com a intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa, desde que lhe “enviou” uma carta, na segunda-feira, iniciativa que o projectou de novo para as páginas dos jornais. Era uma “carta aberta”, para ser divulgada pelos media. Não a mandou no sentido literal do termo. “Não a enviei [pelo correio] porque não encontrei um endereço específico”, justifica.  

Já tinha passado pela experiência de remeter um apelo ao ministro-adjunto, Eduardo Cabrita, mas ninguém respondeu: “Talvez não tenha recebido, por isso tive medo de que também o Presidente não recebesse a minha carta."

"Tenho muitas ideias bonitas"

Afirma que se sente "bloqueado". "Estou a viver numa prisão. Não posso fazer nada. Queria recuperar o dinheiro da família no Iraque. É cerca de um milhão de dólares". Quanto? "Um milhão de dólares", repete, convicto. Dinheiro que acredita conseguir resgatar se puder viajar até à Jordânia.

Tem planos para comprar uma casa que já viu perto do centro de Guimarães e para ajudar outras pessoas que "perderam tudo". "Tenho muitas ideias bonitas, muitos sonhos", assevera Saman, que pretende fazer o doutoramento por cá e repete que não deixou o Iraque por "motivos económicos". 

Saman tem uma memória extraordinária e os documentos que lhe restam — diz ter perdido o passaporte na viagem entre a Turquia e a Grécia — estão organizados com minúcia. Na espécie de dossier que foi construindo, sobressai um currículo impressionante: ensino primário e secundário em Kirkuk, bacharelato em Medicina Veterinária na Universidade de Sulaymaniah, mestrado em Biologia na Universidade de Gaziantep (Turquia). Trabalhou como assistente de Biologia e chegou a presidente da organização não governamental Holy Spirit.

Não acredita poder regressar, a mudança, a acontecer, já não chegará a tempo para si. "Era muito activo”, recorda. Desde que chegou a Portugal, toma fármacos para relaxar. Mas o “melhor medicamento” será conseguir asilo rapidamente. “[Nessa altura] ficará tudo bem, Portugal será meu segundo país.”

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