Bem-vindos ao techno-kitsch

Bem-vindos ao techno-kitsch, onde tudo está bem quando acaba bem e a “rede” assegura a felicidade comunitária: O Círculo.

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Bem-vindos ao techno-kitsch, onde tudo está bem quando acaba bem e a “rede” assegura a felicidade comunitária
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Quem acha que o veadinho do final do All that Heaven Allows de Douglas Sirk é “kitsch” não perde pela demora. Pois que veja as imagens finais de O Círculo, onde, por entre lagos e montanhas (paisagem um tanto sirkiana, vá lá), a fresquíssima Emma Watson arma um grande sorriso para saudar, “bom dia!”, os drones que a filmam e a exibem para uma multidão de admiradores online. Do veadinho aos drones: bem-vindos ao techno-kitsch, onde tudo está bem quando acaba bem e a “rede” assegura a felicidade comunitária.

Mas claro que O Círculo pretende ser um filme “crítico”. Crítico da forma como as pessoas entregam a sua privacidade às “redes sociais”, crítico da forma como as “redes sociais” (ou as empresas por detrás delas) se aproveitam dessa informação para a converterem num mecanismo de controlo — a dado passo, sugere-se mesmo (pela própria protagonista, antes do momento da “tomada de consciência”) que o registo na “rede social total” que no filme se chama The Circle (uma espécie de super-hiper-Facebook) se torne imperativo para que se exerça o direito de voto.

Nisso, mas também na caricatura duma linguagem (“sharing is caring”) e dum estilo de vida “corporate”, no pseudo-messianismo dos profetas da tecnologia (a personagem de Tom Hanks, o inventor e líder do “Circle”, de modos mais ou menos inspirados em alguém como Steve Jobs), na transformação do mundo numa questão de quantidades e binarismos (os cliques, as percentagens de aprovação), “O Círculo” até abre a porta duma “distopia” que não parece nem muito distante nem muito irrealizável. Mas depois fica perdido lá dentro, por razões que têm tanto a ver com solidariedade (a indústria do entretenimento a criticar a indústria da informação? Mas como, se elas são cada vez mais irmãs?) como com uma incipiência, digamos, filosófica, que é incapaz de concentrar o olhar na tecnologia propriamente dita (dada como “neutra”) para se desviar, em vez disso, para a “moralidade” daqueles que a dirigem.

É assim que temos personagens como a de John Boyega, na figura do sofredor inventor da tecnologia revolucionária anunciada no princípio do filme (minúsculas camarazinhas, mais pequenas que uma bola de ping pong, que se podem esconder em qualquer lado e transmitir em directo 24 horas sobre 24 horas), recolhido na sombra, pesaroso pelo uso “mau” que o “Circle” dá à sua invenção — e esta personagem é o melhor resumo da relação de O Círculo com a tecnologia: um homem inventa o fim da privacidade e depois lamenta que a privacidade tenha acabado. Como é óbvio, isto não pode dar bom resultado. E não dá. Castigados os “maus”, Emma Watson pode saudar os drones, tudo e todos unidos na mesma ordem de inocência.

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