Chefs juntam-se e criam o Manifesto para a Cozinha Portuguesa

Partilhar ideias, conhecimentos, produtores. Discutir. Investigar. Há nos cozinheiros a vontade de ir mais longe. Vai nascer um manifesto, que será revelado em Maio, para unir as pessoas “em torno de uma bandeira gastronómica”.

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O manifesto não será um documento de ruptura, de corte com o passado ou com o tradicional Adriano MIranda

Nunca até agora os chefs portugueses se tinham juntado desta forma para discutir aquilo que têm em comum: o passado, o presente e o futuro da cozinha que fazem. A iniciativa partiu dos organizadores do festival Sangue na Guelra, Ana Músico e Paulo Barata, e o resultado será o Manifesto para a Cozinha Portuguesa 0.0, a apresentar no simpósio que marca o primeiro dia do festival, a 5 de Maio.

Nesse dia, um grupo de chefs portugueses subirá ao palco e dirá ao que vem. Ana e Paulo esperam que seja o princípio de um movimento. “O que nos mobiliza é perceber que vivemos um momento único na nossa gastronomia, que tem vindo num crescendo nos últimos dez anos”, diz Ana. “Percebemos que há uma vontade de as pessoas se unirem em torno de uma bandeira gastronómica.”

As muitas conversas que tiveram com cozinheiros ao longo dos cinco anos em que organizam o Sangue na Guelra — um festival que se assumiu sempre como alternativo e que veio dar visibilidade aos “número dois” dos grandes chefs — levaram Ana Músico e Paulo Barata a perceber que uma das coisas que mais preocupam este grupo é “a desunião”. Daí a proposta de criar espaços de encontro e momentos que lhes permitam trabalhar em conjunto.

Depois surgiu a ideia de um manifesto, tal como aconteceu noutros países — o mais famoso é, provavelmente, o da Nova Cozinha Nórdica, que consolidou a revolução que estava a acontecer nos países escandinavos, muito impulsionada pelo restaurante Noma e pelo seu chef, Rene Redzepi. Nesse documento, que afirmou um novo momento numa cozinha até aí quase totalmente ignorada pelo resto do mundo, os chefs comprometiam-se, entre outras coisas, a trabalhar com ingredientes da estação, a promover os produtos nórdicos, a “expressar a pureza, frescura, simplicidade e ética” que queriam associar à sua região.

O conteúdo do manifesto português só será divulgado a 5 de Maio, mas passará também por alguns desses pontos — a relação com os produtores, por um lado, mas também com os investigadores em diversas áreas, da história da alimentação à nutrição — e acrescentará outros que reflictam mais o debate em Portugal, nomeadamente o equilíbrio entre tradição e inovação.

Sangue, sal, pão, frituras

“A nossa gastronomia tradicional é tão forte que para a maior parte das pessoas a nova gastronomia é ainda uma coisa muito estranha. Muitos chefs sentem-se limitados na sua criatividade porque as pessoas esperam deles uma cozinha reconhecível”, explica Ana Músico. Que sublinha: “Este manifesto é dos cozinheiros, nós limitámo-nos a absorver as ideias deles.” E porquê o “0.0” no nome do manifesto? “Zero de origem e zero por ser um número que não vale sozinho, que precisa dos outros”, responde Ana Músico.

Não será um documento de ruptura, de corte com o passado ou com o tradicional. Para Hugo Brito, do Restaurante Boi-Cavalo, por exemplo, o que está em causa é afirmar uma cozinha que respeita “e faz perdurar uma memória histórica”. E sublinha: “As nossas tradições não são tão claramente marcadas por um território com uma cozinha tão específica como a nórdica [que tem menos ingredientes por depender de um clima muito mais difícil]. Temos falado da ideia de Lisboa como uma cidade porosa, generosa, aberta. Além disso, somos menos regionalistas do que outros países, sempre tivemos migrações internas e isso também nos caracteriza.”

Sangue, sal, pão, frituras — os temas escolhidos para os chefs trabalharem foram os básicos da cozinha. Divididos em grupos, começaram a explorá-los para perceber até onde os podiam levar.

Luís Barradas, do Tago’s, em Almada, diz estar “muito entusiasmado” com o que seu grupo já aprendeu sobre sal desde que começaram a visitar as salinas nas diferentes zonas do país. “Só chegámos até Rio Maior. Ainda temos muitas salinas para visitar.”

É por isso que, defende, encara o manifesto como um ponto de partida. “Sou uma pessoa mais de acção”, explica. “É importante pôr as ideias no papel, mas mais importante é a acção, é o que temos estado a fazer no grupo do sal, criar interesse por um ingrediente, explorá-lo, encontrarmo-nos regularmente, criar uma rede.”

Não é fácil arranjar tempo para tudo, mas assegura que está determinado a continuar a reunir-se uma vez por mês com os seus companheiros de grupo para estudar, aprender, trocar ideias. Hugo Brito diz o mesmo: “Para mim, o manifesto é uma óptima desculpa para começarmos a falar de nós como comunidade, para promover um diálogo. E obriga-nos a criar um discurso com alguma coerência e consistência, que é uma coisa que até agora tem existido pouco.”

“Contexto político”

Mas não são apenas os chefs que chegaram mais recentemente à actividade que estão entusiasmados. Os grupos de trabalho integram também, por exemplo, José Avillez, que com o Belcanto já conquistou duas estrelas. “Gosto muito de partilhar e acho que tenho essa obrigação”, diz Avillez. “Além disso, mesmo com chefs mais novos, podemos aprender sempre. A partilha faz-nos crescer e querer ser melhores.”

Não lhe agrada a ideia de associações formais. “As coisas vão surgindo naturalmente. E estamos cada vez mais próximos.” O grupo de Avillez, que está a trabalhar o pão para o simpósio do Sangue na Guelra, reuniu-se em casa dele para fazer pão no forno a lenha e, apesar de ter sido muito difícil conciliar todas as agendas, gostaram muito da experiência.

Avillez recorda que no passado houve iniciativas de encontro, como os pequenos-almoços de chefs (e continua a haver, com sucesso, a Rota das Estrelas), mas acredita que hoje estão reunidas outras condições. “No fundo, vai ter tudo ao mesmo sítio: a economia. Com os restaurantes cheios, temos mais possibilidades de nos juntarmos. Há mais público, há mais dinheiro, logo, mais disponibilidade.” Hoje existe “uma partilha maior”, diz, por seu lado, Luís Barradas. “Nas gerações anteriores havia mais rivalidade.”

Da “bolha de criatividade”, nas palavras de Ana Músico, que se criou para este simpósio, deve nascer algo mais consequente. “O manifesto não são ideias atiradas para o papel por meia dúzia de pessoas apaixonadas. Ele não será nada sem um contexto político, de acção. Tem que haver consequências e estamos já a planear uma série de iniciativas, que serão depois anunciadas, para lhe dar continuidade.”

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