Mudança de época

A segunda volta vai ser travada num terreno inédito: o confronto entre a linha europeísta de Macron e o encerramento da França sobre si mesma, de Le Pen.

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O mais pesado e simbólico efeito da primeira volta das presidenciais é a eliminação do Partido Socialista e de Os Republicanos. "É um escrutínio histórico, que qualifica pela primeira vez dois candidatos que não pertencem às duas formações tradicionais da esquerda e da direita", resume o politólogo Brice Teinturier, director do instituto de sondagens Ipsos. Tal já tinha acontecido à esquerda em 1969 e, por acidente, em 2002. Nunca tinha acontecido à direita e, muito menos, aos partidos da esquerda e da direita ao mesmo tempo. É o sinal dos tempos.

Gérard Colomb, maire socialista de Lyon e apoiante de Macron, corrobora esta análise e acrescenta: "Isto revela um grave mal-estar na sociedade, pois as pessoas deixaram de se reconhecer nos partidos. Mudámos de época."

Macron analisou com justeza o estado dos partidos "tradicionais" e a imparável fragmentação da paisagem política e ideológica. Os "partidos tradicionais" teriam deixado de ser "a solução para ser o problema". E, contra o "declinismo", estado de espírito favorito das elites francesas, propõe um voluntarismo optimista. É, sintomaticamente, o único candidato que não é rejeitado pela maioria da população. A sua fraqueza — não ter partido — é afinal a sua força nas presidenciais. A prova de fogo será capacidade de organizar depois uma maioria parlamentar.

Marine Le Pen salvou metade da sua aposta. Era-lhe imprescindível passar à segunda volta, batendo o candidato do LR, para criar uma dinâmica para as legislativas de Junho de modo a entrar em força no parlamento, a sua principal meta política. Mas perdeu a outra metade da aposta: alargar o seu espaço político, na direita e para lá dela. Na recta final, retomou a litania da xenofobia para remobilizar as bases. Nas legislativas, vai ser cruel a luta pela hegemonia da direita.

2. A segunda volta, aquela que designa o Presidente, vai ser travada num terreno inédito. Nas anteriores eleições, a competição foi estruturada pelo eixo ideológico esquerda-direita. Este eixo, essencial à tradição e à identidade ideológica dos franceses, permanecerá vivo. Mas deixará de organizar a segunda volta e, previsivelmente, o combate político futuro. Uma outra clivagem se lhe sobrepôs: o confronto entre a linha europeísta, social-liberal e de abertura ao mundo, de Macron, e o programa nacionalista, anti-europeu e de encerramento da França sobre si mesma, de Le Pen. É uma novidade que modificará o funcionamento do sistema político. É através desta mudança que as presidenciais francesas mais pesarão no futuro da Europa.

O sistema político francês está em crise. O politólogo Zaki Laidi, ex-conselheiro de Manuel Valls, lembra a "revolução gaullista" de 1958, para evocar uma próxima "revolução francesa" tornada inevitável pela crescente "desconfiança popular perante as elites" e pelas "ansiedades geradas pela globalização e a imigração, pela diminuição da mobilidade social e a crescente desigualdade".

É o terreno de eleição para o confronto entre Macron e Le Pen, os candidatos que melhor espelham o confronto sobre a França e a Europa reais e as alternativas em jogo. Aquele em que se joga a mudança. As presidenciais são apenas um primeiro passo.

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