“Se não se ler bem, é-se diminuído na cidadania e nas oportunidades”

Teresa Calçada e Elsa Maria Conde são os rostos do novo Plano Nacional de Leitura. Novas listas de livros recomendados "serão melhoradas". E a ideia é chegar não só aos mais pequenos, também aos pais dos alunos.

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Nuno Ferreira Santos
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Podem existir clubes de leitura “numa empresa, num banco, numa fábrica”. Pode haver livros nos comboios, e não apenas televisão. Para já, são apenas ideias de Teresa Calçada, que há décadas está ligada à política do livro e da leitura e esteve à frente da Rede das Bibliotecas Escolares até 2014. Ela e Elsa Maria Conde, que também vem da Rede das Bibliotecas Escolares, são agora as responsáveis pelo novo Plano Nacional de Leitura (PNL). Neste domingo, Dia Mundial do Livro, o Governo apresenta o projecto para os próximos dez anos, no Porto.

Teresa Calçada diz que ainda não sabe qual o orçamento que terá para gerir. E há muitas medidas por definir. Mas há decisões já tomadas: o PNL deixa de estar só sobre a tutela do Ministério da Educação e passa a haver uma comissão interministerial, a que se juntam os ministérios da Cultura e o da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Pretende-se alargar públicos, porque até agora foram essencialmente os mais pequenos que estiveram no centro das atenções. E apostar na “melhoria das qualificações dos pais” dos alunos. Mais: “O digital tem de ser uma oportunidade” para aumentar os níveis de leitura.

E que livros novos vão entrar na lista dos recomendados? Teresa Calçada, que lamenta que os contos de fadas não sejam hoje “a literatura mais amada”, remete o assunto para a equipa de especialistas que tem essa incumbência.

PÚBLICO: Em 2014 aposentou-se, em 2016 é homenageada durante a celebração dos 20 anos da Rede das Bibliotecas Escolares (RBE) e é criado um prémio com o seu nome. O que a faz voltar ao activo, como comissária do Plano Nacional de Leitura (PNL)? 

Teresa Calçada (T.C.) — São aquelas coisas na nossa vida que, por vezes, não são muito racionais, ou talvez sejam… A idade, porque a idade conta. Ter a ideia de que ainda posso fazer e que não fui capaz. Depois, acredito mesmo que não é possível ser gente sem ler, sem gostar de ler, sem ser proprietário do uso da palavra. O meu ponto não é o livro, mas a leitura. O meu negócio é a leitura. Era ontem, como é hoje. Se quiser, é um acto de cidadania.

Ajudou na decisão o facto de alguns amigos dizerem que era possível concretizar algumas ideias. Mas a decisão final tomei-a porque a Elsa aceitou vir comigo. Acredito muito no seu contributo porque tem outras competências, capacidades, modos de agir, de pensar e de estudar e que contribuirão para esta parceria e ajudarão no “Ler+”.

“Ler+” é o logotipo do PNL. Vai manter-se?
T.C. — Vai manter-se. Nesta segunda fase do PNL, até 2027, terá um novo logotipo, mas o “Ler+” simboliza o que vamos continuar a fazer, a valorizar a leitura. Honramos a história e o património do PNL, que tem dez anos, e as pessoas que passaram por lá.

Enquanto responsável da Rede das Bibliotecas Escolares esteve na génese da criação do PNL, que balanço faz dos primeiros dez anos?
T.C. — Estive enquanto coordenadora da Rede das Bibliotecas Escolares e costumava dizer que a rede era o tosco e o PNL era a superestrutura, que trouxe um conjunto de recursos e uma espécie de alegria de vir para a rua dizer que “ler é bom”, “Ler+ é melhor”. O balanço é positivo porque alguns indicadores que foram construídos ao longo dos anos o mostram. O PNL 2027 vai ter algumas novidades ou pontos que não foram tão explorados.

E quais são?
T.C. — O PNL tem o envolvimento de outros ministérios, porque um PNL não é só o esforço que se faz na Educação, mas precisa de formas de olhar o mundo que estão associadas à Cultura, como os museus, serviços educativos, cinema… O mesmo é verdadeiro para a Ciência e Ensino Superior, com as redes das bibliotecas dos diferentes organismos, que têm muito para dar e partilhar. A nossa intenção é trabalhar com as autarquias e estas vão querer associar-se, como antes, às propostas que o PNL terá para fazer. Vamos alargar o público. O PNL sempre disse que se dirigia à população em geral, mas deu respostas muito centradas nos mais pequenos e nas famílias.

Elsa Maria Conde (E.M.C.) — O trabalho em torno da leitura vive muito da relação entre as escolas e as bibliotecas, numa colaboração que já existe e que é para continuar, nomeadamente a nível local, das autarquias. Assim como dizemos que há aspectos que têm de ser reforçados, que há vertentes que vão ser trabalhadas de outra maneira, também há outras que é para manter. Tem de haver alguma inovação e diversificação.

T.C. — Há projectos que já não têm o impacto que tiveram no princípio, neste momento há excesso de concursos no PNL e podemos ter outros formatos de ligação a quem trabalha no terreno e com as fundações e museus. Mas o Concurso Nacional de Leitura é para continuar.

A ideia é criar parcerias, projectos, alargar os públicos leitores. Como é que isso se faz?
T.C. — Há que alargar o público, dos mais pequenos aos adultos, com programas que favorecem a prática e valorização da leitura, por exemplo, em ambientes de trabalho. Podem existir clubes de leitura numa empresa, num banco, numa fábrica. Todos os indicadores mostram como é importante a qualificação dos pais para o sucesso académico dos filhos. Vamos apostar numa melhoria das qualificações dos pais, através dos programas dirigidos aos adultos.

E haverá também uma aposta na escrita?
T.C. — O PNL sempre disse “leitura e escrita”, mas a verdade é que nomeamos mais a leitura. Queremos reforçar o valor da escrita em si mesmo, mas também para a própria leitura. Como é que em muitos ambientes digitais a escrita nos pode levar a ser um leitor mais competente? Como é que se desenvolvem capacidades de ler mais qualificadas?

Já sabem o que vão fazer em cada um dos dez anos?
T.C. — Não. Vamos ter um tempo para fazer o plano estratégico e o que se vai propor começará a ser aplicado no próximo ano lectivo, a começar em Setembro.

Como é que avalia o trabalho feito nos últimos anos?
T.C. — Vivemos um período social de uma crise maior, com cortes muito grandes e esperamos que algumas antigas — e outras novas — parcerias, com fundações e organizações nacionais e internacionais, possam melhorar os recursos financeiros do PNL. Embora o PNL seja uma política nacional de leitura — é assim que o vemos —, como o são as políticas de saúde ou ambientais, em que o Estado tem obrigação de oferecer as condições de acesso a todos, é um bem de todos e todos podem colaborar.

Ler é um bem e toda a gente tem de ter oportunidades, estímulos e formas criativas ou solidárias para que isso aconteça. Não se propõe dizer que todos os portugueses têm de ler 20 livros, isso não tem nada a ver com o PNL, o que queremos é contribuir para a possibilidade de capacitar outros para que valorizem hábitos e competências de leitura. Se não se ler bem, é-se diminuído na cidadania e nas oportunidades.

Não se propõem 20 livros, mas do PNL fazem parte listas com recomendações de livros. Estas vão continuar?
T.C. — As listas de livros do PNL são orientações e sugestões por níveis etários que permitem orientar e sugerir para encontrar pistas. Nunca tiveram um carácter autoritário. Ler deve ser por prazer.

Mas as listas vão ser alteradas?
T.C. — Serão melhoradas, com informação mais qualificada. Vamos relacionar por temas, os títulos podem ter recensões para ter mais informação. Mas não deixam de ser sugestões. As listas são feitas por um conjunto de especialistas — poderão mudar para o ano que vem, mas a ideia é ter este auxiliar no sentido de estimular o gosto pela leitura. Porque a leitura dá-nos mundo! Como é que é a nossa frase, Elsa?

E.M.C. — “Ler+, todas as palavras do mundo.” É a frase que vamos usar no dia do lançamento do PNL [hoje].

T.C. — No sentido de revelar que a leitura nos tira do mundo pequenino em que vivemos, faz-nos compreender a alteridade, faz-nos mais tolerantes.

Como é que acompanhou a polémica dos pais da secundária Pedro Nunes, em Lisboa, por causa de algumas passagens de cariz sexual do livro de Valter Hugo Mãe que estava recomendado para alunos do 3.º ciclo?
T.C. — É estranho, provinciano e denuncia que quem se preocupa é menos letrado do que devia. A polémica teve a novidade de fazer aparecer um número crescente de pessoas que defendeu o livro e isso foi muito bom.

Podem surgir outras polémicas semelhantes?
T.C. — Antes desta, houve uma com a Alice Vieira. Estas polémicas alertam para a necessidade de o PNL ser criterioso.

Que livros gostaria que estivessem nestas listas?
T.C. — Os contos de fadas hoje não são a literatura mais amada. Nós dizemos que devemos ler se queremos que as crianças cresçam melhor. Se quisermos que cresçam ainda melhor é ler-lhes mais contos de fadas. Mas não há uma receita. Há uma equipa que tem a obrigação de definir as listas do PNL e para mim devem estar todos os livros que aproximam os miúdos e os graúdos da palavra escrita, da palavra dita, da palavra manipulada. Eu confio nesse conjunto de especialistas, assim como nas editoras e nos autores (escritores e ilustradores). Claro que se edita muita coisa que sabemos que não é bem escrita ou bem trabalhada, por isso, existem critérios para a escolha.

Onde estão pessoas devem estar livros, mas livros variados, plurais e sem preconceitos porque as pessoas são diferentes. O mundo é muito diverso.

Onde devem estar os livros?
T.C. — Quer exemplos? Atenção que ainda não corresponde a nenhum projecto do PNL, mas num comboio pode haver livros, em vez de ter só a televisão. Por exemplo, nas paragens de autocarro podem estar pequenas caixas em que as pessoas podem pôr e tirar livros. Ter bibliotecas abertas 24 horas nas universidades. Fomentar clubes de leitura em empresas, não tem que ser um grupo de elite, porque se o modo de atrair for bem feito, tanto pode gostar o mais pobre como o mais rico. E encontrar formas de combater a conectividade permanente e alienante, com outros conteúdos que existem – blogues, youtubers, etc.

O PNL não quer combater o digital, mas associar-se a ele?
T.C. — O digital tem de ser uma oportunidade. Os miúdos trazem o mundo no smartphone, agora a luta é se somos capazes de os convencer que esse mundo é plural e rico, ou se deixamos que os inimigos desta concepção digam que o que é bom é ser um estúpido digital. O desafio é que a palavra falada e escrita é condição da humanidade. A sobrevivência da palavra e compreender o mundo através dela, é isso que vamos fazer, favorecendo aquilo que é bom porque ler é poder.

E.M.C. — O digital tem de ser complementar ao papel. Hoje há uma possibilidade muito real de chegar à leitura através do digital, por exemplo, através de comunidades virtuais de leitores.

Está previsto fazer estudos? Quais são as necessidades sentidas?
T.C. — A avaliação é para retomar, assim como os estudos que foram interrompidos.

E.M.C. — Um dos mais importantes é o da Leitura em Portugal, de 2007, e que vamos retomar. É fundamental para conhecer a realidade e em dez anos essa modificou-se profundamente. Nomeadamente a questão do digital.

T.C. — Vamos constituir um conjunto de conselheiros para conseguir identificar áreas associadas a centros de investigação, o que vai implicar apoios comunitários. Os estudos são importantes para auxiliar as decisões.

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