A falta de escrutínio do jornalismo português

Aquilo que está em causa é muito mais do que a inocência ou a culpabilidade de José Sócrates ou de Dias Loureiro — é todo o sistema político, judicial, económico e mediático português.

Uma das actividades menos escrutinadas em Portugal é o jornalismo e as empresas de comunicação social. Por uma razão muito simples: conhecemo-nos todos uns aos outros. Dou-vos o meu caso pessoal. Apesar de ter uma carreira relativamente pacata, o único grande grupo de comunicação onde nunca trabalhei foi na Impresa. Tenho 43 anos, sou jornalista desde 1998, e neste país duas décadas de profissão chegam e sobram para tratar por tu quase toda gente que manda nos jornais, nas revistas, nas rádios e nas televisões, mesmo sem ser preciso frequentar o Snob.

Isso cria laços profissionais e pessoais. Ambos são sensíveis. Com a crise no jornalismo, há cada vez menos sítios onde trabalhar, o que significa que reprovar direcções e administrações é limitar a nossa empregabilidade. E para quem preza os laços de amizade, tal escrutínio obrigaria a ter de criticar pessoas que são nossas amigas. Não me estou a armar em corajoso: eu próprio já evitei várias vezes escrever sobre gente de que gosto; e já escrevi sobre amigos utilizando uma delicadeza que estaria ausente se não conhecesse essa pessoa de lado algum. 

Mas, por vezes, se acreditamos na nossa profissão, a crítica e o escrutínio tornam-se inevitáveis. Por isso, há dois dias escrevi um texto sobre Dias Loureiro onde criticava a Global Media, três dos seus directores e um colunista. Entre eles estava Paulo Baldaia, actual director do DN, que fez parte da primeira equipa que apostou em mim para exercer cargos de chefia num jornal. Devo-lhe isso. Ontem respondeu zangado ao meu texto com um artigo no DN intitulado “Jornalistas justiceiros!”, onde nega qualquer falta de liberdade no jornal e lembra que eu próprio faço parte do Governo Sombra (programa que passa na TSF), onde digo o que me apetece sem ser censurado por isso.

É verdade. Mas o ponto central do meu texto em relação à postura do DN e da Global Media mantém-se. Por quatro razões. 1) Não é aceitável que o advogado de defesa de Dias Loureiro (Daniel Proença de Carvalho) seja presidente do Conselho de Administração de um jornal onde o seu cliente é entrevistado no dia seguinte ao arquivamento do processo-crime. 2) Não é admissível que essa entrevista seja feita pelo director-adjunto recorrendo a uma série de perguntas tão macias que mais pareciam cabides para Dias Loureiro pendurar a sua versão dos factos. 3) Não é prudente, neste contexto, que dois directores do grupo subscrevam em artigos de opinião a tese de Dias Loureiro e do seu advogado quanto ao comportamento do Ministério Público. 4) Não é descartável o facto deste caso e das críticas ao MP serem decalcadas daquilo que se tem ouvido em relação à Operação Marquês — porque é aqui, de facto, que tudo se joga.

Paulo Baldaia cita três colunistas do Expresso — Daniel Oliveira, Pedro Adão e Silva e Miguel Sousa Tavares — para demonstrar que não foi apenas na Global Media que se criticou o Ministério Público pelo tom do arquivamento. Certo. Só que esses exemplos apenas reforçam a minha tese de que tudo acaba por desembocar no suspeito do costume. Obsessão minha? Não creio. Aquilo que está em causa é muito mais do que a inocência ou a culpabilidade de José Sócrates ou de Dias Loureiro — é todo o sistema político, judicial, económico e mediático português. Daí a importância deste tema. E daí a importância de nós próprios, jornalistas, sermos escrutinados de uma forma que nunca fomos até hoje. Voltarei ao tema no sábado.   

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