Vitória curta do "sim" no referendo "foi o pior resultado para a Turquia"

Erdogan venceu referendo para mudar a Constituição com 51,4% numa eleição que não cumpriu os padrões democráticos, segundo observadores, e desafiada pela posição. As duas Turquias que se mostraram na campanha estão cada uma mais entrincheirada na sua posição.

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Apoiantes de Erdogan celeberam o resultado do referendo Alkis Konstantinidis/REUTERS

Se a campanha para o referendo às alterações constitucionais na Turquia partiu o país em dois, o resultado confirmou a profunda divisão: 51,4% para o “sim”, 48,5% para o “não”. “Este é o pior resultado possível para a Turquia”, comentou ao PÚBLICO Henri J. Barkey, do centro de estudos Woodrow Wilson, em Washington. Uma vitória por uma pequena margem, numa eleição com uma campanha desigual e suspeitas de irregularidades “vai trazer problemas para o futuro”, antevê.

Esta não foi a vitória que o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, esperava. Com jornalistas críticos presos, um estado de emergência em vigor, uma campanha dominada pelo seu lado, o resultado deveria ter sido uma vitória mais expressiva. Mas ainda a Comissão Eleitoral não tinha anunciado os resultados, já Erdogan clamava vitória e os seus apoiantes festejavam o resultado na rua. O facto estava consumado.

Só horas mais tarde é que a Comissão Eleitoral anunciou o resultado dizendo que o “sim” ganhara com pouco mais de um milhão de votos (1,25 entre 55 milhões de eleitores).  

Mas, pela primeira vez na História da Turquia democrática, o maior partido da oposição não reconheceu o resultado e pede a anulação do referendo, e o segundo prometeu contestar os resultados. Há dois motivos: a oposição dize que a certa altura a Comissão Eleitoral deixou de partilhar dados com os partidos; pouco antes das urnas fecharem a Comissão alterou os critérios de contagem dos votos, passando a contar como válidos boletins sem o selo oficial.

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Os observadores internacionais dão-lhes razão dizendo que esta medida foi uma ilegalidade. Não cabe à Comissão alterar as regras, dizem juristas e analistas políticos. Os observadores dizem que além de ilegal, a medida “retirou importantes salvaguardas”.

Mais, a chefe da missão da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), Tana de Zulueta, enumerou outros problemas, em conferência de imprensa: o boletim não tinha sequer uma pergunta (quando pretendia fazer várias alterações), e não houve um debate nem informação imparcial sobre o que estava em causa. A oposição ao "não" teve um tempo muito reduzido de acesso aos meios de comunicação, e as organizações da sociedade civil ficaram proibidas, por lei, de fazer campanha. 

Erdogan desvaloriza OSCE

A resposta de Erdogan foi curta: os observadores deveriam “pôr-se no seu lugar”. A Turquia não “viu, ouviu ou reconheceu a existência” de um relatório da missão da OSCE, declarou, voltando a pegar num dos seus argumentos para o voto “sim, repetindo que a Europa se opôs mais às alterações (antes defendera que uma Turquia forte não era do interesse dos europeus) do que a oposição turca.

O que poderá acontecer agora? Da parte de Erdogan, parece claro: seguir em frente. Desde a noite de domingo já lançou desafios em todas as direcções.

Disse que “a mensagem do povo foi clara” e que o resultado do referendo “acaba com todas as discussões” sobre os novos poderes. Afirma vai avançar imediatamente com as reformas – apenas uma pequena parte será já aplicada: a maioria só entrará em vigor a seguir às eleições de 2019, em que o Presidente passa a ter poder executivo, legislativo e parte do judicial. Mas para já Erdogan volta a poder liderar o seu partido, o AKP, o Presidente passa a ter mais influência no Alto Conselho do Poder Judicial, e finalmente acabará com a presença de militares no Tribunal Constitucional.

Nos seus discursos pós-referendo, Erdogan referiu ainda que poderá fazer um referendo à pena de morte (algo que já propôs na sequência da tentativa de golpe de Estado de Julho passado) e ainda repetiu a ameaça de referendar as negociações de adesão à União Europeia.

Muito dependerá da oposição turca e da reacção internacional.

Henri Barkey sublinha que o que aconteceu no domingo é especialmente problemático porque a instituição eleitoral “era a única em que os turcos confiavam, e essa confiança foi abalada”. “É a primeira vez na História da Turquia moderna em que há uma suspeita deste género - noutras eleições, os votos suspeitos seriam recontados”.

Um líder diminuído

A curto prazo, não há dúvida de que a oposição a Erdogan, que está a ser alvo de uma purga que começou pelos apoiantes do golpe de Estado e continuou para os opositores, “vai procurar meios de fazer oposição”, embora já não lhe restem muitos. “Está mais zangada do que nunca.”

Por outro lado, Erdogan pode clamar vitória, mas com as suspeitas e a margem pequena da vitória – o “não” venceu nas grandes cidades turcas, Istambul, a capital Ancara, e Esmirna – é “um líder diminuído”, estima Barkey. “A nível internacional não vai ser levado a sério.” Não foi felicitado pela vitória por nenhum líder democrático.

O analista do centro de estudos norte-americano diz que a reacção da União Europeia vai ser decisiva. A ideia de que a Europa está refém de Ancara por causa do acordo em relação aos refugiados não o convence: “A Turquia já ameaçou várias vezes que suspendia o acordo e nunca o fez." Por três razões: teria uma resposta negativa da UE (e por mais que a retórica seja extremada, o pragmatismo das relações económicas tem falado mais alto), que entretanto melhorou muito a protecção das suas fronteiras, e muitos refugiados já não querem viajar para a Grécia, sabendo das condições horríveis dos campos nas ilhas gregas.

Na sequência do referendo, a Áustria pediu o cancelamento formal das negociações entre UE e Turquia. A Alemanha e França optaram por um tom mais moderado, pedindo a Erdogan que dialogue com a oposição.

Henri Barkey sublinha que não é possível fazer já um prognóstico e que levará tempo até surgir uma imagem mais clara do que poderá acontecer. “Será a oposição a Erdogan muito dura? Qual será a resposta internacional, especialmente em termos de investimento económico, de idas de turistas?”, enumera. Tudo isto terá influência. “Mas o cenário não é bom”, resume.

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