Face Oculta: condutas de responsáveis públicos "que se aproveitem" não são "toleradas", dizem juízes

Confirmada prisão efectiva de Vara e Penedos e cinco absolvidos. À maioria dos arguidos só resta recorrer para o Constitucional, já que o Supremo já não deve poder reanalisar o seu caso.

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Relação do Porto confirmou a condenação de Armando Vara a cinco anos de prisão efectiva Miguel Manso

O Tribunal da Relação do Porto confirmou esta quarta-feira a maioria das condenações dos 36 arguidos do processo Face Oculta, mantendo dez das 11 penas de prisão efectivas decretadas pelo Tribunal de Aveiro em Setembro de 2014.

Do rol de 35 arguidos que recorreram – o recurso relativo a duas empresas não foi aceite e um suspeito morreu já depois de contestar a condenação – apenas cinco conseguiram a absolvição. Mas um deles, um engenheiro da antiga Rede Ferroviária Nacional – Refer não tem muitos motivos para sorrir já que a Relação manteve-o como co-responsável pelo pagamento de quase 400 mil euros àquela empresa pública, agora chamada Infra-estruturas de Portugal.

No grupo de arguidos que viu confirmada a prisão efectiva incluiu-se o antigo ministro socialista Armando Vara a quem a Relação manteve a pena de cinco anos de cadeia pela prática de três crimes de tráfico de influência. E igualmente o ex-presidente da Redes Energéticas Nacionais (REN), José Penedos, que apesar de ter conseguido a absolvição de dois crimes que lhe eram imputados, mantém a principal condenação por um crime de corrupção passiva, vendo apenas a pena de prisão efectiva reduzida de cinco anos para três anos e três meses.

Cancelada condenação por associação criminosa

O principal arguido do processo, o empresário de sucata de Ovar, Manuel Godinho, que alegadamente montou uma rede tentacular recorrendo a vários esquemas, incluindo furto, burla e corrupção para beneficiar as suas empresas, também manteve uma pesada pena de prisão. Apenas viu cancelada a condenação por associação criminosa, o que fez a pena de cadeia passar de 17 anos e meio de prisão para 15 anos e dez meses.

Os três juízes da Relação, que decidiram todos os recursos por unanimidade, confirmaram igualmente a pena de quatro anos de prisão efectiva do filho do antigo presidente da REN, o advogado Paulo Penedos por alegadamente vender a sua influência junto de Manuel Godinho. Apenas lhe deram razão na parte cível cancelando a perda a favor do Estado de mais de 256 mil euros que o Ministério Público considerava serem incompatíveis com os rendimentos declarados fiscalmente, com base numa perícia financeira às contas do advogado, que a defesa sempre contestou.

Dos 11 arguidos condenados a penas de prisão efectiva em primeira instância, apenas um arguido, um ex-director da Refer, conseguiu que a sua pena fosse suspensa. A pena inicialmente aplicada desceu de quatro anos e meio de prisão para três anos e meio. A suspensão da execução da pena ficou, no entanto, condicionada ao pagamento de 50 mil euros à empresa que gere a rede ferroviária nacional no prazo de dois anos.

Na parte do acórdão conhecida, as últimas 12 páginas de um total de 1152, justifica-se porque não se suspende a pena de prisão a um dos arguidos (identificado numa parte inicial ainda não disponível) que não possui antecedentes criminais, como acontece com Vara e José Penedos. "Actualmente e face à grave crise económica que vivenciámos, o sentimento de reprovação social deste tipo de criminalidade é especialmente elevado, tendo surgido a consciência dos efeitos sociais do mesmo e da forma como afecta a generalidade dos cidadãos que são vítimas efectivas do crime, com perdas reais concretas. A repulsa destes ilícitos agravou-se na mesma proporção em que se viram agravadas as condições de vida do cidadão comum", fundamentam os juízes. E acrescentam: "As condutas de pessoas com responsabilidades públicas que se aproveitem da sua posição para tirarem beneficíos para si ou para terceiros, não são toleradas pela comunidade". 

Primeira decisão não tem nulidades

Os magistrados, que subscrevem os argumentos da primeira instância, concluem que apesar de naquele caso o arguido não ter antecedentes criminais "as exigências mínimas de prevenção geral" se "opõem a que seja suspensa na execução da pena de prisão". Assim, e contrariamente ao que sustentaram inúmeros advogados de defesa, indignados com o facto do Tribunal de Aveiro ter aplicado penas de prisão efectivas a alguns dos arguidos, a Relação do Porto considera que não existe na decisão da primeira instância "nenhuma nulidade por falta ou omissão de fundamentação, nem violação legal". 

Razão para festejar têm os três responsáveis da REN que estavam associados aos dois crimes de que José Penedos acabou por ser absolvido. Os três engenheiros condenados pelo Tribunal de Aveiro a penas de prisão suspensas, que variaram entre os três anos e sete meses e os dois anos, acabaram por ser ilibados neste caso, que para eles tem agora um ponto final. Igualmente nesta posição está um antigo administrador da IDD- Plataforma das Indústrias de Defesa Nacionais, que tinha sido condenado em primeira instância a uma pena suspensa de 18 meses de prisão. O Ministério Público não poderá recorrer destas absolvições.

Aliás, só Manuel Godinho estará em condições de apresentar um recurso ordinário junto do Supremo Tribunal de Justiça. A arguidos como Armando Vara, que viu confirmada a condenação, só deverá restar recorrer para o Tribunal Constitucional, recurso que suspenderá a aplicação da respectiva pena.

Esta quarta-feira à saída do tribunal o advogado do antigo ministro socialista, Tiago Rodrigues Bastos, admitiu essa possibilidade em "termos abstractos", já que frisou que ainda não conhece a fundamentação do acórdão, que ainda não é do conhecimento de nenhum dos arguidos nem do Ministério Público. "Não era a decisão de que estávamos à espera", disse Tiago Rodrigues Bastos, à saída do tribunal, admitindo estar "surpreendido" e "desiludido" com a decisão.

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O advogado de José Penedos, Rui Patrício, mostrava-se esta quarta-feira menos desiludido, mas longe de cantar vitória. “Há que estudar bem o acórdão, mas posso dizer já que, se por um lado corrige alguns erros graves da primeira instância, absolvendo o meu cliente de dois terços da condenação, por outro lado não corrige todos. Não me pode satisfazer porque havia e há que reconhecer a total inocência do engenheiro José Penedos”, afirmou ao PÚBLICO Rui Patrício, que abre assim a porta a um recurso.

“Fui vencido em todas as questões jurídicas que levantei"

O mesmo acontece com Artur Marques, advogado de Manuel Godinho, que lamenta ter saído perdedor em quase toda a linha e garante que “não se conforma” com esta decisão. “Fui vencido em todas as questões jurídicas que levantei, algumas muito relevantes, menos na associação criminosa”, sublinha Artur Marques.

Curioso, neste recurso, é que acabou por beneficiar o único arguido que não recorreu. Trata-se de Namércio Cunha, o contabilista considerado o antigo braço-direito de Manuel Godinho, que aproveitou do facto de todos os arguidos terem sido foi absolvido do crime de associação criminosa. Condenado inicialmente a 18 meses de prisão, suspensos, pelo crime de corrupção activa, o único acusado que aceitou colaborar com o Ministério Público, acabou com um pena suspensa de nove meses de prisão.

No Face Oculta foi investigada uma alegada rede de corrupção centrada em Manuel Godinho que foi condenado por corromper altos responsáveis da Administração Pública e também funcionários de empresa públicas ou concessionárias de serviços públicos para beneficiarem as suas empresas. Duas delas, a O2 e a SCI também foram condenadas criminalmente a pagar duas multas no valor global de 245.500 euros. Recorreram, mas os recursos não foram sequer analisados, tendo sido recusados por questões formais. 

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