Rússia: Fazer oposição a Putin não é uma brincadeira para crianças

Os jovens que não se lembram de outro líder que não Putin estão na linha da frente da recente onda de contestação ao regime russo. Sabem que o sistema é, neste momento, inabalável, mas recusam baixar os braços. O Kremlin não sabe como lidar com esta geração.

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Na linha da frente da contestação estão as gerações mais jovens MAXIM SHIPENKOV/EPA

Há 17 anos que Vladimir Putin governa a Rússia sem dar espaço a qualquer oposição digna desse nome – o Presidente controla a imprensa e o seu partido o Parlamento. Mas há uma parte da população cada vez mais revoltada com o autoritarismo e os vícios de Putin e do seu círculo próximo. Quem os ouve?

Os protestos de há uma semana – em que dezenas de milhares de pessoas marcharam entre a rua Tverskaia e a Praça Pushkin, em Moscovo, e em mais de oitenta outras cidades do país – chamaram a atenção do mundo, convencido que a oposição na Rússia era inexistente. Mas a contestação está a germinar há já algum tempo. “Há uma actividade crescente de protestos em que participam diferentes grupos sociais”, diz ao PÚBLICO  Denis Volkov, investigador do Centro Levada, em Moscovo, citando, por exemplo, a marcha de homenagem ao ex-vice-primeiro-ministro, Boris Nemtsov, no final de Fevereiro, para assinalar o segundo aniversário do seu homicídio, que muitos acreditam ter sido politicamente motivado por causa da sua oposição ao Kremlin.

Na linha da frente da contestação estão as gerações mais jovens. As imagens dos protestos mostravam milhares de rapazes e raparigas, muitos menores de idade. A Reuters, por exemplo, conta a história de Roman Shingarkin, um estudante de liceu de 17 anos, que foi um dos quase mil detidos em Moscovo. É filho de um ex-deputado apoiante de Putin, mas isso não o impediu de se manifestar.

Nas ruas, os gritos de protesto e os cartazes tinham como alvo a corrupção. Na origem da mobilização esteve um vídeo publicado pelo activista Alexei Navalni – condenado a 15 dias de prisão após a manifestação – em que eram revelados os esquemas que o primeiro-ministro e ex-Presidente, Dmitri Medvedev, utilizou nos últimos anos para enriquecer à custa dos cofres públicos. O vídeo circulou pela rede social Vkontakte – a preferida dos jovens russos – e depressa atingiu milhões de visualizações.

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Alexei Navalni sabe usar a mesma linguagem de propaganda que o Kremlin SERGEI ILNITSK/EPA

A surpresa

Da indignação ao protesto, bastou a convocatória de Navalni para manifestações em todo o país. Mas quase todos foram apanhados de surpresa pela quantidade de pessoas que saíram à rua, arriscando a prisão, uma vez que a maioria das marchas não foi autorizada pelos poderes locais. “Todos ficaram surpreendidos, até Navalni”, diz ao PÚBLICO, por email, o analista do Centro Carnegie de Moscovo Andrei Kolesnikov.

Não é uma tarefa fácil em lado nenhum, e na Rússia pode ser titânica. Vários inquéritos pintam um retrato dos jovens russos como materialistas, conformistas e muito pouco interessados em política. Uma sondagem recente do Centro Levada mostra que 84% dos jovens nunca participaram em qualquer tipo de actividade política ou da sociedade civil. No final do ano passado, a jornalista Julia Ioffe entrevistou, numa reportagem publicada na National Geographic, uma série de russos nascidos após o colapso da União Soviética. O sentimento comum é de desencanto com a actual classe política, mas que não é acompanhado por qualquer motivação para intervir de forma activa na esfera pública.

“Não sei qual é o objectivo de falar sobre algo que não se pode influenciar. Falar por falar não tem interesse”, diz uma das entrevistadas. Outro, quando confrontado com o facto de que se poderá aproximar dos 30 anos sem ter conhecido outro líder que não Putin, caso seja reeleito em 2018, dá uma resposta igualmente significativa: “Vivi toda a minha vida com a minha mão direita e está tudo bem.”

Victor Oleinik tem apenas 19 anos, mas conhece como poucos o activismo político que se faz na Internet russa. Tem blogs desde os 14 anos, e é hoje lido por cem mil pessoas, dos 18 aos 24 anos, conta ao PÚBLICO, a partir de Moscovo. É desde essa idade que tenta convencer outros jovens a participar mais na política.

É neste contexto que Victor se tem movido. Ele foi um dos participantes na manifestação de há uma semana, em Moscovo, mas o seu interesse vem de trás. Começou a escrever por volta dos 13 anos, numa altura em que começou a ler livros de História. “Quando se começa a ler sobre História, começa-se a perceber mais sobre o que se passa no próprio país”, explica. Nasceu na Ucrânia, mas vive na Rússia desde a infância, mais ou menos pela mesma altura que Vladimir Putin fazia a sua ascensão meteórica.

Ninguém fala com eles

Victor não ficou muito surpreendido por ter visto tantos jovens naquele domingo. “Acho que é normal que os jovens estejam sempre do lado da oposição”, diz, lembrando-se talvez daquilo que leu sobre o Maio de 1968. “É difícil começar” este tipo de consciencialização, reconhece o activista, mas “depois é uma bola de neve”.

Quando se tenta perceber a raiz da popularidade do regime, os canais de televisão – quase todos directa ou indirectamente dependentes do financiamento público – são um dos principais factores apontados. É nestas transmissões ininterruptas, em que Putin é apresentado como um líder forte, que voltou a trazer a Rússia para a mesa das grandes potências, perante a imoralidade e a decadência do Ocidente, que é criado o domínio esmagador do Kremlin.

Com as gerações mais jovens, este efeito é pouco marcante. A televisão é cada vez mais substituída pela Internet como fonte de informação. É aqui que chegamos aos blogs de Victor e de outros como ele. “O Governo não está interessado em comunicar com esta geração”, conclui. Para conseguir a atenção dos seus colegas e conhecidos, diz que basta apresentar os factos. “Ninguém fala de factos na Rússia. Os canais usam propaganda relacionada com emoções. E quando se contam às pessoas factos reais, elas começam a pensar nisso cada vez mais.”

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Vladimir Putin no Àrctico, esta semana: a televisão é usada como um canal incessante de propaganda ALEXEI DRUZHININ/Sputnik/EPA

Navalni, apesar de não ser um jovem, também fala esta linguagem. O vídeo que publicou no YouTube tem uma linguagem informal, quase satírica. Há, por exemplo, um enfoque em pormenores cómicos, como o facto de Medvedev ter investido parte da sua fortuna numa quinta para criar patos – e depressa a Internet se encheu de montagens em torno desta ideia. Na semana anterior, Navalni tinha sido alvo de um ataque de apoiantes do Governo que lhe atiraram com tinta verde à cara, durante uma acção de campanha numa cidade da Sibéria. O aparente infortúnio acabou por jogar a seu favor, com várias pessoas a publicarem fotografias nas redes sociais com as caras pintadas de verde em solidariedade.

Regime mantém solidez

Os media estatais enquadraram as manifestações, sempre lembrando que não eram autorizadas, como uma espécie de “rebeldia juvenil”. Mas Victor Oleinik quer deixar bem claro que os protestos atraíram gente de todos os sectores da sociedade. “Acho que a visão de que isto foi um protesto de miúdos da escola joga a favor do Governo, para unir outros grupos”, explica.

Denis Volkov, do Levada, nota que as manifestações representam “apenas um pequeno sector da sociedade”, mas não deixou de ficar surpreendido com o nervosismo do Kremlin, uma vez que “não existe uma ameaça imediata ao regime”. A própria candidatura presidencial de Navalni está longe de estar garantida, uma vez que o activista está a responder, de novo, por um caso de corrupção.

Mesmo que avance, a generalidade dos analistas considera muito improvável que o desfecho das eleições presidenciais de 2018 seja outro que não a recondução de Putin por mais cinco anos. A anexação da Crimeia, em 2014, “ trouxe a legitimidade do regime para um novo nível” e esse efeito ainda se mantém, observa Volkov. Por outro lado, a oposição liberal sofre de um problema crónico de falta de união e Navalni não parece ser o nome mais indicado para o superar. Esse sentimento é notório quando se pergunta a Victor se pensa em votar no próximo ano. “Se Navalni for candidato, claro que voto nele, ele é o único realmente da oposição. Mas isso assusta muitos russos”, afirma.

No entanto, a visão de milhares de jovens a pedir a saída de Putin parece ter lembrado o Governo de que muitos deles terão idade para votar no próximo ano – e pôr em perigo a margem substancial pela qual o Presidente quer ser reeleito. Até o próprio Putin – que raramente se pronuncia sobre a oposição, que considera inexistente – alertou esta semana para o perigo das manifestações, que diz serem “uma ferramenta das Primaveras Árabes”.

Para tentar travar a contestação, o Fundo Académico Russo enviou esta semana recomendações ao Governo para organizar sessões de esclarecimento junto dos mais jovens para explicar de que forma as decisões dos governantes “melhoram a qualidade de vida dos cidadãos russos”, escreve o Moscow Times.

Perante a perspectiva de ter Putin mais cinco anos, Victor lembra um provérbio conhecido: “Os políticos são como as meias sujas, quando começam a cheirar mal, o melhor é mudá-las.”

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