Até quando estaremos imunes ao populismo?

Há um momento em que a crise imparável dos valores pode pôr gravemente em causa a confiança no regime democrático e favorecer a tentação.Já estivemos bem mais longe dessa ameaça.

Entre as várias originalidades portuguesas – algumas das quais, como a «geringonça», têm suscitado curiosidade internacional –, há uma que se destaca nos dias que correm: a imunidade de que parecemos desfrutar face ao vírus populista, nacionalista e extremista em difusão acelerada por todo o mundo e, designadamente, na Europa (onde o holandês Wilders e a francesa Le Pen, além do húngaro Órban e dos ultraconservadores polacos aparecem cada vez mais alinhados com o imperador do fenómeno, o americano Trump e a sua sombra, Putin).

Não temos por enquanto forças políticas representativas com essas características e só mesmo alguns demagogos da direita se propõem encontrar uma filiação populista no Bloco de Esquerda e no PCP que, independentemente de certos devaneios radicais contra o euro e a União Europeia – mais assinaláveis entre os comunistas –, têm demonstrado um surpreendente entendimento institucional com o Governo socialista. Percebe-se o objectivo desses comentadores: projectar em Portugal a influência de um populismo de esquerda, representado pelo Podemos espanhol e por certas forças latino-americanas (de que o catastrófico caso-limite é o chavismo venezuelano). A verdade, porém, é que o populismo constitui um fenómeno radicado sobretudo entre a extrema-direita mais exacerbadamente nacionalista, xenófoba e racista.

Porque é que movimentos provenientes dessa área não se manifestaram ainda em Portugal? Aparentemente por razões de ordem histórica, a que não será estranho o quase meio século de ditadura salazarista, e pelo facto de as elites políticas, à esquerda e à direita – marcadas pela memória desse passado – se terem demarcado das tentações autoritárias mais extremas. Não por acaso, o partido mais à direita é o CDS/PP, que se reclama de uma matriz centrista e democrata-cristã, enquanto o PSD insiste ainda em identificar-se com uma social-democracia mítica, apesar da sua filiação no conservadorismo europeu clássico. Se olharmos para Espanha, onde também perdura a memória do franquismo, verificamos que a extrema-direita foi perdendo representatividade com a normalização democrática, enquanto o espaço mais marcadamente populista passou a ser ocupado pelos antigos «indignados» do Podemos – que hoje atravessa, aliás, uma crise profunda de crescimento. Finalmente, no espaço ibérico não existe ainda, em proporções semelhantes àquelas que se registam noutros países europeus, um desestabilizador surto migratório vindo do Médio Oriente e África.

Apesar disso, os últimos tempos têm sido férteis em Portugal para potenciar uma reacção populista. O cruzamento dos casos que vêm animando a nossa vida política são reveladores de uma deliquescência democrática que parece – e a mera percepção tornou-se, como é sabido, um vírus altamente contagioso – não poupar nada nem ninguém.

O pingue-pongue entre a direita e a esquerda a propósito da Caixa e dos offshores, com a insustentável opacidade envolvendo cada caso, são apenas afloramentos de um ambiente mais generalizado de suspeitas sobre o crescimento de fenómenos de corrupção e de um sentimento de impunidade para o qual contribui a tradicional lentidão da máquina judicial. Um ex-primeiro ministro e o banqueiro outrora mais poderoso do país são vedetas de um processo que parece interminável e a que se juntam novos protagonistas, como os dois principais administradores da antiga PT, considerada ainda há poucos anos a empresa mais inovadora do país.

Não falta sequer a suspeita visando o Governador do Banco central de que teria sido condescendente com o ex-presidente do BES, quando já estaria suficientemente comprovada a falta de idoneidade do banqueiro. E podem ainda apontar-se o empréstimo feito por um procurador acusado de corrupção passiva ao mais mediático juiz português ou a insólita notícia de que um ex-ministro do Governo anterior – envolvido já numa fraude de habilitações académicas – aparece como testa de ferro de uma holding candidata ao Novo Banco, a qual é proprietária do Banco Efisa (na sequência da tristíssima história do BPN, exemplo célebre da promiscuidade entre política e negócios).

O poder do dinheiro, da banca – hoje quase toda em mãos estrangeiras –, a troca de favores, o arrivismo e a ganância mais soez, a corrosão dos padrões éticos mais elementares, num país sujeito recentemente a uma penosa cura de austeridade, assumem proporções escandalosas e revoltantes. Ora, por mais pacíficos que sejamos, há um momento em que a crise imparável dos valores pode pôr gravemente em causa a confiança no regime democrático e favorecer a tentação do populismo. Já estivemos bem mais longe dessa ameaça.

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