Joie de vivre

A Normal Lost Phone aproveita o meio para lançar um alerta sobre a consciencialização que nem todos têm um umbigo igual a quem joga e que o umbigo de quem joga não é mais valioso que o dos restantes humanos.

Fotogaleria
Fotogaleria
Fotogaleria
Fotogaleria

Os videojogos podem ter as suas virtudes nos temas que abordam, chegando ao âmago de cada um devagarinho, como o orvalho. A Normal Lost Phone é uma dessas obras, sendo honesto no que tem a dizer, mas conduzindo o jogador pela sua curiosidade para tentar a compreensão e o abraço ao mundo de dentro para fora, do coração para o seu semelhante.

Desenvolvido inicialmente pela Accidental Queens para uma game jam, chegou recentemente ao mercado a sua versão definitiva, mais polida e com mais conteúdo narrativo. A premissa é simples: encontram um telemóvel perdido. Sam recebeu-o no final de 2015, o jogador encontra-o no final de janeiro de 2016. Não há instruções sobre o que têm que fazer, não há um objectivo definido. Acedem ao rectângulo de batimento em silicone para o explorar consoante o fio condutor da vossa sede.

É um cenário que vemos sem reparar dezenas de vezes diariamente. Aplicações emuladas e espalhadas pelo ecrã fictício: música, meteorologia, definições, email, calendário, galeria de fotografias, calculadora, um browser, uma aplicação dedicada às mensagens escritas e uma aplicação chamada Lovbirds. Dando trabalho ao nosso lado pisteiro, a indagação sobre esta pessoa passará pelas pontas dos dedos com o ritmo que adquirimos a usar o nosso próprio telemóvel ao longo dos anos.

Nesta transposição da obra para o quotidiano ganha-se um ritmo natural. Sabemos onde temos as nossas informações armazenadas, portanto é um processo em piloto automático. Começamos a esmiuçar as mensagens escritas: o que Sam escreveu ao seu pai, à sua mãe, a Sophie, ao seu tio Raymond, Salim da escola, ao tio Hugo, à tia Estelle, começamos a perceber que há um núcleo dedicado aos jogos de tabuleiro, outro aos seus colegas de escola, e ainda outro dedicado ao contentamento da literatura; começamos a perceber que nem tudo é o que parece.

Como A Normal Lost Phone não tem uma sequência de objectivos delineada, o que nos guia são os processos lógicos, ou seja, cada aplicação acaba por dar uma pista sobre o que temos que fazer a seguir. Essencialmente, o jogador chega à vida de Sam com uma peneira à procura da próxima pepita de ouro. Estudamos as conversas para inicialmente ligarmos o telefone à rede Wi-Fi de Melren, o que nos dará acesso a outras aplicações que podem ser exploradas a favor do nosso emaranhamento no arco narrativo, leia-se: em conhecer a vida de Sam.

O browser mencionado acabará por dar acesso a um fórum com uma secção VIP inicialmente bloqueada. A aplicação Lovbirds colocou o protagonista em contacto com várias pessoas online, como podemos ver através das mensagens - e das imagens trocadas. Além de tudo isto, há uma aplicação que é apenas uma fachada e acaba por revelar anotações que compilam todo o arco narrativo antes de chegarem ao final da obra. Ou seja, recorrendo a várias curvas repentinas no argumento, a recta final é uma chamada de atenção.

Há dois trunfos: o poder da escrita dá a quem lê a formulação de várias personalidades à volta de Sam. O segundo é que Sam poderá ser qualquer pessoa, a incompreensão de não poder ser quem é, a pressão da sociedade que nos rodeia e pressiona como o mar faz às pedras de uma ilha. Sam só queria ser quem é no seu corpo, na sua identidade. Instigar por A Normal Lost Phone fora é, ou espera-se que seja, uma consciencialização para o amor, para um fogo a que tantas vezes terceiros querem controlar a forma das chamas.

O mais frustrante em escrever sobre este videojogo não é constatar o rombo de algumas arestas, mas sim ter a clara sensação que versar abertamente sobre o tema que o nutre é minar o impacto da mensagem da produtora. Notem apenas que é um desenvolvimento angustiante a favor da inclusão e da felicidade alheia. Perante tudo isto, a sua importância como despertador em 2017, A Normal Lost Phone deveria ser concatenado a esta essência: E então? Sê feliz.

E esse lado mais rombo é o solavanco em alguns pontos da dissertação narrativa. Sendo uma obra que depende sobretudo do texto, em determinados momentos, especialmente quando temos que estar em alerta para o papel de todas as aplicações no puzzle global, alguns jogadores poderão ficar frustrantemente presos sem saber se não repararam na dica para o avançar.

Há também uma questão que é transversal a toda a obra, a todas as obras desta índole. Por muito conseguido que seja o sublinhado, o cômputo geral da acha no sentir de cada um, ao terminar A Normal Lost Phone não pude deixar de me sentir culpado. Quem é um estranho para esmiuçar a vida de um estranho? Mais: quem sou eu para conhecer os segredos mais profundos de Sam, para lhe desfragmentar a existência até ao despontar até então, até à sua adolescência?

O jogo coloca-nos numa pele voyeur que não assenta a todos, a mim certamente não assenta nem como uma luva demasiado larga. É provável que seja este também um dos intentos da produtora: conhecendo os segredos de quem não devíamos, o nosso subconsciente deve reconhecer que todos os desconhecidos - e conhecidos e o âmago de cada um - esconde verdades além da carapaça que arrastamos. Ainda assim, sente-se inequivocamente o trespassar dessa carapaça, ainda que Sam represente o mundo à volta de cada jogador, conjuntamente o nosso mundo.

Esta situação é agravada pelo tema transversal, o que torna tudo menos videojogo e mais situação documental. Esse tema em questão faz com que estejamos a auscultar o amor e o ódio sobre alguém edificado sobre alicerces representativos da condição humana. Não é uma aventura do reino dos dragões e do despojado de humanidade: estas angústias secretas podem estar a metros de vocês, em polegadas de ecrã escondidas num bolso: ao vosso lado, em vocês, em nós. Em eles e elas, que se representam pelo aço sentimental, cofre de miolo emocional que não deveria estar escondido. Não deveria, mas está.

Sabendo o que tinha em mãos, o interface do telefone que encontram adopta um estilo mais desenhado e menos emulação digital. Mesmo jogado num telemóvel, o dispositivo que encontram transborda as funcionalidades para um mundo diferente, idêntico mas que se demarcar esteticamente. É competente, uma decisão válida que em nada sabota o que tem a dizer. Também competente, mas com momentos inspirados, é a banda sonora. Variada e embaladora, está lá toda na aplicação dedicada à música. Sabem, exatamente igual à que têm no vosso dispositivo tudo-em-um.

Comecem A Normal Lost Phone de olhos fechados, mas saibam que terão pela frente personagens bem desenvolvidas, uma obra de um género que se tem popularizado com títulos como Mr. Robot: 1.51exfiltrati0n, Lifeline e Sara is Missing. Saibam, acima de tudo, que explorar o telefone de Sam é explorar o tecido emocional que ambiciona o cunho da aceitação. Numa altura em que o mundo se agita, agitem também a vossa consciência com os amores e desamores de Sam; os amores e desamores de Sam que não devem ser esquecidos com o fechar da aplicação, com a ação final: o apagar da nossa curiosidade.

Sugerir correcção
Comentar