Birmânia: Violência sem precedentes contra uma minoria já massacrada

ONU diz que atrocidades cometidas durante ofensiva militar contra os rohingya podem configurar limpeza étnica. Aung San Suu Kyi promete investigação.

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Das 101 mulheres entrevistadas pelos investigadores mais de metade foram violadas ou agredidas sexualmente Mohammad Ponir Hossain/Reuters

“Que tipo de ódio pode levar um homem a matar um bebé que chora pelo leite da mãe, ou uma mãe a ter de presenciar a sua morte enquanto é violada em grupo pelos soldados que a deviam proteger? Que tipo de ‘operação de limpeza’ é esta?” Zeid Ra'ad al Hussein, o alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, não escondeu a sua indignação ao apresentar o resultado da investigação às atrocidades cometidas nos últimos meses pelo Exército birmanês contra a minoria rohingya – homicídios e violações em massa que, segundo os investigadores, podem constituir uma campanha de “limpeza étnica”.

A ONU diz que os rohingya – minoria muçulmana acantonada no Noroeste do país, sem direito a cidadania nem a voto, e sujeita a todo o tipo de perseguições – são uma das etnias mais perseguidas do mundo. Mas Hussein sublinha que os relatos recolhidos pelos investigadores que enviou ao Bangladesh, onde 66 mil pessoas procuraram refúgio, “sugerem que a violência recente atingiu um nível sem precedentes”.

Tudo começou depois de 9 de Outubro e do também inédito ataque de um grupo rohingya contra postos militares na fronteira contra o Bangladesh. A punição das autoridades foi imediata e concentrou-se na zona Norte do estado de Rakhine (Noroeste), vedada desde então pelo Exército e onde nem os investigadores da ONU foram autorizados a entrar. Mas os testemunhos dos 204 sobreviventes entrevistados no Bangladesh destapam o suficiente – “a matança de bebés, crianças, mulheres e velhos, o fogo aberto sobre as pessoas em fuga, aldeias inteiras queimadas, detenções em massa, violações e violência sexual maciça sistemática, a destruição deliberada de comida”, lê-se no relatório divulgado esta sexta-feira em Genebra.

Há horrores de todas as formas. Da mãe que viu o filho de oito meses ser degolado enquanto ela era violada, a outra a quem mataram a filha de cinco anos que a tentava defender dos violadores. Das rajadas de metralhadora disparadas dos helicópteros, a famílias inteiras atiradas para casas a arder. Das 101 mulheres entrevistadas, mais de metade foram violadas ou agredidas sexualmente. Centenas terão morrido.

“A perseguição étnica é semelhante à que vimos noutros contextos descritos como de limpeza étnica”, disse Linnea Arvidsson, a chefe da missão, citada pela Reuters. Hussein tem poucas dúvidas de que foram ou estão (os últimos relatos remontam a Janeiro, embora a intensidade das operações pareça ter diminuído) “a ser cometidos crimes contra a humanidade”. Pediu, por isso, uma “reacção internacional robusta” para forçar a Birmânia a pôr fim às operações militares, admitindo transmitir as denúncias ao Conselho de Segurança, a quem competirá decidir o envio do caso ao Tribunal Penal Internacional. 

Já depois deste apelo, o primeiro-ministro da Malásia, Najib Razak, anunciou que vai enviar toneladas de comida e ajuda de emergência para os refugiados rohingya – “um esforço para demonstrar que todo a sua dor e sofrimento não pode ser ignorado”.

O Governo birmanês, de que Aung San Suu Kyi é a líder de facto, acusava até agora os rohyngias de inventar mentiras, assegurando que as operações no Noroeste eram parte de uma campanha legítima de contraterrorismo. Nesta sexta-feira, contudo, a Nobel da Paz falou ao telefone com Hussein e prometeu lançar uma investigação governamental às denúncias. “Falei uma hora e meia ao telefone com ela e pedi-lhe que use todos os meios possíveis para pressionar os militares e as forças de segurança a pôr fim a esta operação”, explicou o alto comissário à Reuters.

Apesar de ter cedido o governo à Liga Nacional para a Democracia, após as históricas eleições de 2015, o Exército mantém nas suas mãos grande parte da influência que acumulou durante as décadas em que esteve no poder. Suu Kyi, no entanto, nunca se pronunciou abertamente a favor do fim da repressão dos rohingya, o que lhe tem valido inúmeras críticas internacionais. 

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