Quando até o dicionário se vira (subtilmente) contra Donald Trump

Ou de como uma conta de Twitter da reputada Merriam-Webster se tornou uma legenda, por vezes discretamente irónica, da nova presidência e da actualidade mundial.

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Reuters

Não têm sido só os humoristas dos EUA a trabalhar com sarcasmo o momento político americano. Uma conta no Twitter de uma reputada editora de dicionários tem estado a dar um subtexto político às palavras de Trump e da Casa Branca. Quando a conselheira de Trump fala em “factos alternativos”, a Merriam-Webster partilha a definição de “facto”. Quando Trump se engana na grafia de uma palavra, a Merriam-Webster esclarece-a. E, tweet a tweet, ganha seguidores e atenção.

Quando o porta-voz da Casa Branca fala em “traição” sobre o despedimento da procuradora-geral Sally Yates e se recusa a definir a palavra a pedido de um jornalista, a Merriam-Webster reage rapidamente: “Nós definimos a palavra.” Afinal, essa é a sua função.

Sim, Jon Stewart voltou ao regaço de Stephen Colbert, exausto de tanta agitação nos primeiros dias do novo Presidente, e Conan O’Brien, Jimmy Kimmel, Seth Meyers, Trevor Noah, Samantha Bee e até Jimmy Fallon passaram a semana a falar dos protestos nos aeroportos por causa do decreto que suspende a entrada de refugiados e cidadãos de vários países. Questionam-se quanto ao seu papel neste cenário, uns riem-se mais do que outros, mas estão lá, por definição, para entreter. Por seu turno, a Merriam-Webster é, por definição, a rainha das definições. Fundada em 1831, a editora é agora detida pela empresa da Encyclopædia Britannica e tem uma reputação duradoura enquanto repositório de conhecimento sobre as palavras. Agora também acumula créditos nas artes da atenção à actualidade e da ironia fina graças à gestão da sua presença nas redes sociais.

No domingo dia 20 de Janeiro, após a tomada de posse de Donald Trump, a conselheira deste Kellyanne Conway dizia na televisão, no programa Meet the Press, que a versão da Casa Branca sobre o número de pessoas que foram assistir à cerimónia, dissonante das imagens e opiniões de especialistas, eram “factos alternativos”. Horas depois, na conta de Twitter da Merriam-Webster surgia a definição daquilo que é um “facto” juntamente com a confirmação de que desde que Conway tinha proferido tal termo as buscas pelo vocábulo “facto” tinham aumentado repentinamente. Mais tarde, acrescentaria alguns dados sobre o mesmo tema. 

tweet do “facto” deu à editora uma atenção particular no noticiário americano – são “um dos verificadores de factos mais engraçados de Trump”, escreveu a CNN. “Não sentimos em momento algum que não devíamos escrever o artigo”, disse Lauren Naturale, gestora de redes sociais da Merriam-Webster, sobre o texto explicativo sobre os usos, significado e entendimento daquele termo que partilhou dia 22 de Janeiro. “Escolher não reportar que existia aquela tendência teria sido muito mais político do que continuar como se nada fosse”, explicou sobre as quatro pessoas que trabalharam no texto. “Se não acreditamos que as palavras são importantes, então porque é que se consulta um dicionário?” 

Os "factos alternativos" da Administração Trump geraram logo comparações com o novo best-seller deste Janeiro de 2017, a mais famosa obra de George Orwell. Na distopia sobre o totalitarismo 1984, editada em 1949 e que não só voltou aos tops de vendas como se prepara para ser peça na Broadway, fala-se uma "novilíngua" – um termo que, aliás, também foi explicado pelo Twitter da concorrente da Merriam-Webster, a Oxford, que ainda assim não tem a mesma abordagem às redes sociais que a primeira. A novilíngua é a língua de sempre, mas extirpada de certas palavras e conceitos e que, assim, condiciona o pensamento e molda a realidade à imagem que o partido no poder determina. Factos alternativos para uma realidade alternativa, preocupações que estão hoje na mente de muitos observadores.

Os tweets mais populares da Merriam-Webster não estão associados só à nova presidência dos EUA. Fazem parte da sua rubrica Trend Watch, encetada em 2010 e que identifica buscas por um dado termo ligado à actualidade no seu site que se destaquem do padrão e depois trabalha os seus resultados. “E tentamos acrescentar alguma informação adicional sobre o significado da palavra e de como era usada [na história, por exemplo]”, explicou Lauren Naturale. Só que “coisas que não deviam ter uma carga política, como a definição de facto, estão a ser recebidas como se tivessem uma carga política”.

Naturale tem 33 anos e foi professora de Inglês na Universidade da Califórnia – Berkeley. Candidatou-se ao seu recente emprego através do Twitter e foi a escolhida no início de 2016. Hoje é a gestora de redes sociais da editora que queria “mostrar às pessoas quão divertido e relevante é o dicionário”, adiantou Lisa Schneider, a presidente responsável pela área digital da Merriam-Webster ao USAToday. Foi Schneider que contratou Lauren Naturale e a estratégia resultou, especialmente com a actualidade política a dar-lhe uma ajuda.

Muitas das tendências de busca, disse Naturale ao mesmo jornal, “nada têm que ver com política”. "Nós só reportamos as pesquisas", lembrou, também no Twitter, Kory Stamper, escritora e lexicógrafa da Merriam-Webster. "A culpa não é nossa se ninguém procura por 'cachorrinhos'."

Uma legenda da actualidade

No último ano, muitos dos resultados da Trend Watch apanharam palavras ou ideias proferidas na campanha eleitoral para a presidência dos EUA que depois levaram os utilizadores a pesquisar online. Como quando o então candidato republicano Donald J. Trump falava em “bad hombres” do México, que voltaram à baila na semana passada, e dispararam buscas pelo termo ou por palavras homófonas que as pessoas tentavam esmiuçar. Depois da vitória de Trump sobre Hillary Clinton, agudizaram-se as interrogações na esfera pública sobre a "normalização" do Presidente eleito e a sua persona. A editora escreveu um artigo sobre a verdadeira acepção do termo, que não era bem o que os críticos do político pensavam, e a forma como tem visto o seu uso mudar.

Olhar para a língua com a lupa da actualidade é um exercício com história – no PÚBLICO, por exemplo, Rita Pimenta e Aurélio Moreira escrevem sobre palavras semanalmente no P2 e no P3. Já a vigilância em torno do uso da língua no espaço público nesta curta mas já rica era Trump tornou-se pasto para os peritos em palavras mas não só – os próprios media tentam identificar formas como se distorce a verdade, como fez o programa de rádio nova-iorquino On the media. Mas, como descreve a NBC, “a conta de Twitter da Merriam-Webster destacou-se pela sua autoridade e porque as pessoas gostam de ver figuras públicas ser corrigidas”.

A Merriam-Webster pode servir como uma espécie de legenda discreta ou uma piada em registo deadpan da actualidade. A sua força não dependeu só de Trump, mas foi intensificada pela divisão política no país e pela verborreia do Presidente – que é, aliás, um profícuo utilizador do Twitter. Em Dezembro, Trump tweetou sobre um acto “unpresidented” (quando quereria dizer “unprecedented”, sem precedentes). O dicionário respondeu “Bom dia! A Palavra do Dia é… não é unpresidented. Essa palavra não consta. É nova.” O tweet encaminhava os leitores para a verdadeira palavra do dia – a interjeição “huh, que em inglês evoca espanto e incredulidade.

A reacção aos tweets mais ligados à actividade política “foi esmagadoramente positiva”. “[Estão] entre os tweets mais virais que alguma vez tivemos”, observou Naturale. “Uma série de pessoas disseram-nos que iam adquirir o nosso dicionário ou descarregar a nossa app, ou que iam comprar um livro [da editora].” À data de publicação desta notícia a editora tem já quase 300 mil seguidores e o número continua a crescer – fala-se cada vez mais da conta Twitter da Merriam-Webster. 

A decisão de abandonar uma presença “previsível” nas redes sociais e ser mais como os funcionários da Merriam-Webster, que têm “conversas e tiradas inteligentes e atrevidas”, comentou Lisa Schneider, deu-lhes mais seguidores sobretudo pelo seu tom. Algo que é partilhado por várias instituições, da portuguesa PSP, cuja conta de Facebook é gerida com humor, às empresas de restauração ou companhias aéreas que se destacam pela adequação à informalidade das redes sociais. Se a palavra do dia é “hard-boiled”, algo como “duro, esvaziado de sentimentos”, o tweet vem com um GIF de Bogart em Relíquia Macabra. Se é “abstémio”, o vegetarianismo de Lisa Simpson e Paul McCartney é lembrado. Tiram-se dúvidas, partilham-se histórias sobre literatura e jogos com palavras, há threads de poesia ou de emoji.

A conta nunca refere directamente ou liga para o 45.º Presidente dos EUA ou para quem com ele trabalha. Esse acto, por si só, fez com que um novo termo surgisse no discurso público americano. Não está definido no dicionário, mas o que a Merriam-Webster está a fazer é “subtweetar” Trump – ou seja, falar sobre alguém de forma bastante clara mas sem o referir directamente naquela rede social. A Casa Branca, declarou Naturale, ainda não reagiu à actividade da Merriam-Webster na Internet.

“Não comentamos políticas ou política, mas quando uma figura pública usa a língua de uma forma singular e isso se torna notícia [é justo abordar o tema]”, defendeu Peter Sokolowski, editor da Merriam-Webster, na NBC. A palavra do ano da Merriam-Webster foi “surreal” – 2016 pareceu-lhes “um ano daqueles”. 

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