Sexo, drogas e rock n’ roll

As Raparigas é o primeiro romance de Emma Cline. Uma trama bem arquitectada e duas fortes figuras femininas.

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Emma Cline mantém um registo distanciado e rigorosamente original

É possível apontar, com alguma exactidão, o momento em que as boas intenções da cultura de uma década, as dos anos 60 do século XX, com a revolução sexual, a apologia da liberdade total, o romantismo idealista de um regresso a um estilo de vida comunitário avesso ao materialismo e à posse de bens, se transformou num pesadelo. Foi quando a chamada “família” de Charles Manson, um auto-proclamado guru e músico falhado, assassinou várias pessoas — incluindo a actriz Sharon Tate, mulher de Roman Polanski — numa Califórnia soalheira, embalada ao ritmo do rock’n roll e envolta nos vapores da marijuana. A escalada de violência de Manson e dos membros da sua tribo — composta principalmente por jovens mulheres — espalhou o terror e resultou em carnificinas altamente mediatizadas pela imprensa da época. Com estupefacção, o mundo assistiu à maior perversão do “peace & love” e preparou-se para repudiar uma juventude perdida em drogas e abandono.

Com base nestes acontecimentos, Emma Cline construiu o seu primeiro romance que é simultaneamente uma história semelhante — Califórnia, finais dos anos sessenta, jovens atraídas por um homem carismático, drogas, escalada de violência — e uma reflexão em torno da condição feminina, da amizade erótica entre mulheres e das tremendas transformações operadas nessa época.

Em As Raparigas existe uma narradora, Evie, a qual, numa idade avançada, com a sombra nunca desvanecida dos acontecimentos dos seus catorze anos a persegui-la, recorda minuciosamente o passado, quando tudo aconteceu na sua adolescência, um período difícil, marcado pelas transformações sofridas, tanto a nível físico como psicológico, tão avassaladoras que o trauma daí proveniente nunca se desvaneceu. Quando, como acontece com Evie, esse tempo de confusão e angustia coincide com uma tremenda revolução de costumes, o resultado (dramático) é uma mistura de solidão, tédio, sobreexcitação sexual e o desejo irracional de ser aceite em qualquer grupo, em qualquer seita. Numa Califórnia varrida pelos ventos da contracultura e pelo choque brutal entre gerações, Evie, nem bonita nem especialmente inteligente, inocente mas perspicaz, é brutalmente arrastada para a alienação das drogas e para a excitação do sexo livre, cujos efeitos são mais devastadores do que exaltantes.

Primeiro, é a sua própria estrutura familiar que se desmorona. O pai sai de casa, a mãe procura consolo nos braços de outros homens e bebe para esquecer os primeiros traços de envelhecimento e a sensação de tempo perdido. Sem amor nem compaixão, a não ser por si mesma, distancia-se cada vez mais da filha, absorta como está nos seus “problemas”. Evie vai-se desligando das suas referências infantis e procurando equivalências, substituições: a casa passa a ser o rancho onde se juntam os vagabundos, o pai passa a ser Russell o líder da seita, os amigos dão lugar aos companheiros na comunidade, o amor é substituído por sexo, única forma de estar mais perto dos outros, de experimentar uma intimidade consoladora. A amiga de infância, Connie, como tudo o que lhe recorda essa outra vida, passa a ser a representação do “inimigo”, de tudo o que Evie quer enterrar. Cega pelo desejo por Suzanne e pelo sol demasiado intenso, Evie não vê (não quer ver) a esqualidez do rancho, as roupas sujas e rasgadas, a alienação, o desespero, a negligência, porque tem fixada na mente, a imagem do dia glorioso em que viu, pela primeira vez Suzanne e as “irmãs” na praça, com os cabelos ao vento, as roupagens excêntricas e o riso provocante que prometia uma infindável liberdade.

No final do livro, num momento de soturna nostalgia, uma Evie desencantada reflecte sobre a atracção que Suzanne exerceu sobre ela — “Nunca ninguém tinha olhado para mim antes de Suzanne, olhado a sério, de modo a que ela acabara por tornar-se a minha definição”. Nesta frase está condensada toda a trama, firmemente ancorada nas contradições de um tempo de mudança, de uma geração que, sem ninguém a apontar-lhe um caminho, descobriu tarde demais que os ideais mais tentadores podem, na prática, levar a uma perda de identidade e, por vezes, da vida.

Com ecos de As Virgens Suicidas de Jeffrey Eugenides e de As Raposas de Fogo de Joyce Carol Oates, As Raparigas é o primeiro romance de Emma Cline. Mas enquanto Eugenides penetra profundamente na desencantada existência dos subúrbios e na perturbação psicológica das personagens, Oates constrói figuras de heroínas com as suas raparigas selvagens e prontas para tudo. Quanto a Cline mantém um registo distanciado e rigorosamente original, enquanto compõe uma trama bem arquitectada e duas fortes figuras femininas, Evie e Suzanne, irmãs, amantes e inimigas. No entanto, a saga é sempre a mesma: jovens votadas ao abandono e à solidão, questões de género, famílias disfuncionais, o despertar do desejo e a forma como o sexo feminino é tratado.

Nota: o produtor Scott Rudin, de Este País não é para Velhos e de Steve Jobs já adquiriu os direitos para adaptar As Raparigas ao cinema.

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