Porto de recreio de Olhão num turbilhão de ilegalidades

Antigo presidente da câmara e a ex-chefe de divisão de urbanismo, acusados pelo Ministério Público, terão lesado a autarquia em sete milhões de euros em benefício de uma empresa de construção.

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A autarquia chegou a usar esse solo para lixeira municipal e para implantar casas prefabricadas de habitação social DR

A Câmara de Olhão está a alienar lotes de terreno para construir em áreas que já pertenceram ao espaço lagunar da ria Formosa. A última venda, lançada em hasta pública — dois lotes com a área de 8486 metros — tinha como valor base 5,2 milhões de euros, mas o concurso, encerrado há dois dias, ficou deserto. Só que a Polícia Judiciária de Faro está a investigar eventuais ilegalidades na forma como a autarquia se apoderou de um espaço que esteve integrado no domínio público marítimo e agora está a ser ocupado para, diz a câmara, dar “resposta aos actuais desafios urbanísticos e turísticos” da cidade. Neste mesmo local, denominado Loteamento do Porto de Recreio de Olhão, já existe um hotel de cinco estrelas e um empreendimento turístico, com cerca de 400 apartamentos. Por alegados benefícios dados à sociedade construtora deste conjunto, o Ministério Público acusou o ex-presidente da câmara Francisco Leal (PS) e a arquitecta Ditza Reis de terem lesado a autarquia em sete milhões de euros.

O actual presidente da câmara, António Pina, levou à assembleia municipal, na passada quinta-feira à noite, após a venda ter ficado deserta, uma proposta para que os dois lotes fossem registados na lista dos bens patrimoniais da autarquia. O autarca, socialista, adiantou ao PÚBLICO que vai procurar uma segunda tentativa de alienação, por concurso público. “Não é minha intenção proceder a uma negociação directa”, referiu. Dos oito lotes que a autarquia pretende vender para habitação e turismo, uma parte significativa da área (mais de 25 mil metros quadrados) foi considerada “terra de ninguém” durante décadas.

A posse dos terrenos por parte da autarquia dá-se por uma compra a um particular em 1936, mas a maior aquisição ocorre através do recurso à figura de usucapião em 1954, ocupando 15 prédios que estavam em zonas inundadas e de domínio público. A autarquia chegou a usar esse solo para lixeira municipal e para implantar casas pré-fabricadas de habitação social. Uma vez aterrado o espaço lagunar, onde foram depositados os resíduos sólidos e removidos os destroços das casas, criaram-se as condições para criar um loteamento. Com a ria Formosa ali ao lado, e o porto de recreio a uma distância de 65 metros do hotel, abriram-se as oportunidades para novas áreas de expansão urbanística.

Queixa na PGR

Na reunião da assembleia municipal de 24 de Junho do ano passado, o deputado do Bloco de Esquerda (BE) Domingos Terramoto questionou o presidente da câmara sobre a legitimidade do município para se apoderar de terrenos que, aparentemente, deveriam pertencer ao Estado, por via da Direcção-Geral do Tesouro. “Os deputados do BE são destruidores do bem municipal ao afirmar dever-se ao Estado os terrenos”, contra-atacou António Pina.

Mais tarde, em Setembro, deu entrada na Procuradoria-Geral da República (PGR) uma queixa particular denunciado que os terrenos que fazem parte do loteamento Porto de Recreio de Olhão — em parte, resultante de aterros — estariam inseridos no antigo sítio das Prainhas, sob influência das marés e portanto domínio marítimo. “Os autarcas tomaram como seu algo que não lhes pertencia”, lê-se.

Mas esta prática não é de hoje. Recuando aos anos de 1966 e 1980, quando foram construídos os jardins públicos Patrão Joaquim Lopes e Pescador Olhanense, junto à ria Formosa, inseridos na faixa do domínio público marítimo, o presidente da câmara, por inerência do cargo, era ao mesmo tempo presidente da Junta Autónoma dos Portos do Sotavento do Algarve — a entidade que tinha jurisdição sobre a área.

A história da relação próxima que permitiu contornar algumas regras entre o poder local e a autoridade marítima, apesar da evolução das políticas ambientais, tende a repetir-se. A ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, anunciou há menos de um mês em Portimão que o Governo pretende transferir para a Comunidade Intermunicipal — Amal — a gestão das marinas, portos de recreio e portos comerciais. Por outro lado, os autarcas têm vindo a defender a necessidade de fazer uma revisão ao Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC), exigindo maiores poderes de gestão às autarquias nas zonas ribeirinhas e frentes de mar.

A primeira venda

A primeira venda, em hasta pública, só com uma oferta, do Loteamento do Porto de Recreio, foi há 13 anos. O lote 1, com 10 mil metros quadrados, foi transaccionado por um milhão de euros. Na mesma zona, foi construído o empreendimento Marina Village, com cerca de 400 apartamentos. O promotor destes dois projectos — mais a urbanização Quinta João de Ourém, com 300 fogos, na freguesia de Pechão — foi a empresa Construções Largaça, do grupo Bernardino Gomes. O então presidente do município, Francisco Leal, e a arquitecta Ditza Reis, na altura chefe de divisão da gestão urbanística do município, foram acusados pelo Ministério Público (MP) de ter “lesado o município em, pelo menos, cerca de sete milhões de euros”, por ter sido cobrado uma taxa de valor inferior, relativa à compensação pela não cedência de uma área de 18.060 metros quadrados de equipamento colectivo no empreendimento Village Marina. Os arguidos, diz o MP, cometeram um crime de prevaricação. “Praticaram todos os actos necessários para que fossem reunidas condições” para que a sociedade, “sob a aparência de uma suposta legalidade de cobrança da compensação”, pagasse um montante próximo dos 491 mil euros,quando deveria ter desembolsado cerca de 7,5 milhões. O administrador do Grupo Bernardino Gomes, António Pereira, questionado pelo PÚBLICO, responde: “Pagámos tudo o que a câmara nos pediu.” Por sua vez, a arguida Ditza Reis justifica: “Fiz os cálculos de acordo com a lei e naquela situação concreta.”

A investigação, levada a cabo pela Policia Judiciária de Faro, teve origem numa queixa apresentada pelo movimento de cidadania Somos Olhão que denunciava actos eventualmente indiciadores de corrupção no licenciamento de obras particulares. O Ministério Público, através do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Évora, concluiu não terem sido apurados “indícios suficientemente consistentes sobre quaisquer contrapartidas/vantagens patrimónios ou não patrimoniais (...) que pudessem sustentar a imputação do crime de corrupção” ao antigo autarca e à arquitecta. Por isso, nesta matéria, o despacho foi de arquivamento. “A minha vida foi passada a pente fino pela Unidade de Perícia Financeira e Contabilística da PJ — chegaram até às contas dos meus netos”, declarou Francisco Leal ao PÚBLICO. E acrescentou: “Estranho que estas notícias estejam a aparecer depois de ter sido contactado para que considerasse a hipótese de me recandidatar a presidente.” Francisco Leal foi presidente de câmara durante 20 anos, sucedendo-lhe António Pina, que tinha sido seu vice-presidente no último mandato.

O vereador Ivo Madeira, do BE, inconformado com a situação, apresentou, na reunião de câmara do dia 22 de Novembro, uma proposta, que não chegou a ser votada, sugerindo que o município se constituísse assistente no processo, a decorrer no Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Évora, com o objectivo de vir a pedir uma indemnização civil. O vereador do BE justificou a iniciativa com o facto de estar em causa a “delapidação do erário público”, devendo por isso a autarquia ser ressarcida. O executivo recusou a proposta, justificando que se tratava de uma acusação, não de uma condenação.

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