A ascensão da nova ignorância e a democracia como fragilidade

Também é verdade que por muito maus que muitos órgãos de comunicação social sejam, são infinitamente melhores do que as redes sociais como fontes de informação.

O artigo que precedeu o actual, sobre a “nova ignorância”, suscitou todas as reacções esperadas, muitas das quais nem justificam resposta, porque não são críticas ao que eu disse, mas ao que eu não disse. Há excepções e nesse caso voltaremos a elas, como é o caso da crítica de António Guerreiro de que o “meio” inquina o conteúdo, logo uma crítica da natureza da que faço à questão da ignorância não pode ser feita nos jornais. Guerreiro admite que a contradição que aponta se aplica a si próprio, mas vale a pena discutir essas críticas, feitas na tradição de Karl Kraus, e que contêm um problema quando generalizadas ao debate racional em democracia, por escasso que seja. O mesmo se aplica à tradição crítica oriunda da chamada “escola de Frankfurt” e de um marxismo assente nos primeiros textos de Marx.

Há também o problema da relação da antiga e nova ignorância e se tem sentido falar em “nova” ignorância e sobre a sua caracterização, questões que justificam ser mais discutidas, assim como saber se o que se passa é apenas uma evolução de novas (in)competências que não justificam ser desvalorizadas ou anatemizadas.

A maioria das críticas, algumas, insisto, que nem merecem esse nome, é feita a posições que não são as que defendo. Aliás, nalguns casos, acusando-me de posições que são explicitamente negadas no artigo. Muitas das críticas têm a habitual agressividade de quem pensa que está a ser moderno ou que emigrou para as redes onde encontra uma sociabilidade que lhe basta e uma fama paroquial entre pares, e por isso considera-se visado na nova ecologia onde “existe”. É penoso ver pequenas personagens que vivem no Twitter entre variantes do mau engraçadismo e a coluna social da irrelevância e que estão muito contentes consigo próprias, com o aconchego de uma pequena corte de ecos. O mal é do Twitter? Em si não é, como não é da Internet, nem do telemóvel, nem das aplicações, nem de nada. Repito-me: recuso “a crença de que são as novas tecnologias que estão a mudar a sociedade. É o contrário. É a mudança da sociedade que potencia o uso de determinadas tecnologias, que depois acentuam os efeitos de partida”.

Basta compreender isto que estou sempre a repetir, para se perceber que a acusação de ludismo também não tem pés nem cabeça. Sejam bem-vindos todos os devices, todos os gadgets, todas as máquinas, desde que não as liguem ao meu corpo, ao meu sistema nervoso, nem à minha cabeça, se não forem próteses, pacemakers, bombas de insulina, etc. Como com os químicos, sempre que seja o meu comportamento e a minha autonomia que está em causa, há um problema. Claro que a morfina pode ser particularmente bem recebida, mas não preciso de estar a enunciar excepções, quando se percebe bem o que quero dizer.

Um exemplo de que é o uso social e não o gadget que conta é o telemóvel. Voltemos à nova ignorância, com exemplos daquele que é o principal instrumento de mudança da sociabilidade, o telemóvel. Há dois mecanismos em que o telemóvel, em conjugação próxima com a autopublicação nas redes sociais, exerce efeitos socialmente perversos: a prevalência do controlo em relação à comunicação e a perda da privacidade. São efeitos conjugados todos associados a uma espécie de presentificação da vida, uma obrigação, cuja ausência é socialmente punida, de estar sempre presente, de estar sempre a responder a telefonemas ou mensagens que fazem o efeito dos velhose pings destinados a saber se dois equipamentos estavam ligados. Quem envia um ping espera um pong, e isso é que explica os biliões de telefonemas, mensagens de sms, ou no Whats App que são o contínuo ruído de fundo de uma nova sociabilidade e que representam novas formas de controlo. Comunicar no sentido de enviar ou de fornecer uma informação útil é um uso muito minoritário, face ao enviar o ping do “onde estás?” ou qualquer outra variante, que é controlo.

O mesmo “recuo” se dá na privacidade e no seu valor, com o retorno nas redes sociais à sociabilidade da aldeia, ao mundo pequeno e claustrofóbico onde se sabe tudo sobre todos, onde todos se revelam, expõem, justificam e cometem inconfidências sobre si próprios e outros, sem reserva e discrição, valores em desuso.

Também nunca falei de jornais bons versus redes sociais más. Bem pelo contrário, há anos que digo que o nosso jornalismo é de péssima qualidade e, pior ainda, que mais do que a pressão totalitária de fora o risco para as democracias vem de uma usura do espaço público que vem de dentro e que também é recente na sua dimensão, porque acompanha o acesso das “massas” a consumos materiais e “espirituais” que ocorrem desde o início do século XX e foram potenciados por conquistas sociais como o tempo livre pago. Fenómenos como a publicidade e a propaganda, ou mecanismos cada vez mais sofisticados de manipulação da opinião acompanham este processo, mas, para o que penso ser uma democracia, tem de haver circulação de informação mediada profissionalmente, pelas mesmas razões, repito-me, que não troco um médico por um curandeiro.

Por isso, também é verdade que por muito maus que muitos órgãos de comunicação social sejam, são infinitamente melhores do que as redes sociais como fontes de informação. O que disse e digo é que o que falta é “edição”, ou seja, a aplicação de regras profissionais que transformam um evento numa notícia. Existe uma ideologia nessas regras, tais como são aplicadas? Existe, mas também existe ideologia quando não o são.

A rasoira da complexidade, a redução de tudo ao preto e branco facilita como é óbvio uma contestação fácil. Por exemplo, nunca disse que as razões do crescendo populista se encontram nas redes sociais. Explicitamente neguei-o, mas não vale a pena. Cito-me “[A nova ignorância] não explica, nem é a causa de nenhum destes fenómenos, mas é sua parente próxima e faz parte da mesma família.” É mais simples responder ao que não disse do que ao que disse. O que disse é que as redes sociais são um importante reservatório desse populismo e um mecanismo de ampliação “as redes sociais, que, não sendo a causa do populismo, são um seu grande factor de crescimento e consolidação”. Não é o mesmo, pois não? E por aí adiante.

Há um ponto essencial no que escrevi e escrevo que é o que me interessa desenvolver. E esse ponto não precisa de nenhuma sofisticação, é um modus vivendi, é uma escolha precária e débil, impressionista e muito pouco intelectualizada.

Tenho a posição, que é eminentemente subjectiva, ou seja, cultural, de que a democracia, entendida como uma conjugação entre a vontade popular, a lei e o direito, e o melhorismo social, é a única forma que temos de viver razoavelmente. Tenho também a posição de que se trata de uma opção cultural, uma escolha que contraria tudo, a natureza, todas as variantes de darwinismo social, a sociobiologia, o Id do dr. Freud, a seta da história de Marx e as múltiplas variantes actuais da TINA (“there is no alternative”). É, digamos, uma suspensão volitiva, assumida colectivamente, de que é melhor viver assim do que de qualquer outra maneira. Por ser apenas isto é de uma fragilidade extrema, é a excepção à regra, uma violação da entropia, que talvez por isso dure pouco ou seja sempre minoritária, já que imperfeita é certamente. Não produz uma qualquer teleologia da história, nem emana dela, mas também não é uma utopia, porque circunstancialmente na história existiu e existe por mera vontade dos homens.

É uma posição minimalista que reconhece todas as forças e todos os poderes, muito mais “naturais”, mas que se centra na ideia, que me parece moralmente satisfatória, de que só há uma possibilidade de “paraíso” e ele é terrestre, e que o único mecanismo político aceitável é o que assenta no “bem comum”, seja lá o que isso for. “Seja lá o que isso for”, mas, repito, quando não há, sabemos todos que não há. Não é sequer o churchilliano “menos mau de todos os regimes”, porque, quando existe, não é mau, é bom. É uma manifestação social e socializada do “milk of human kindness” de Shakespeare. Parte, no fundo, da consciência da finitude, da morte, do carácter único da vida e da vontade de a viver o melhor possível.

Esta ideia da democracia é particularmente ameaçada pela ignorância, como por todas as formas de pobreza material e espiritual.

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