Tudo é Rússia

“As fronteiras da Rússia não acabam nunca”, interrompeu o Presidente, perante o riso geral.

No Manual do Debutante Russo, do escritor russo-americano Gary Shteyngart, o dia de um jovem funcionário do guichet de língua russa da segurança social em Nova Iorque começa quando um dos seus casos difíceis, diagnosticado como psicótico, o aborda para conseguir a nacionalidade americana — pondo-lhe em cima da mesa um pequeno monte de notas de cem dólares. Vladimir, o funcionário, diz-lhe: “O que está a fazer, senhor Rybakov? Não pode dar-me dinheiro. Isto não é a Rússia”. Rybakov responde em modo filosófico: “Tudo é Rússia! Onde quer que vás… Rússia”. Logo a seguir, ao descobrir-se que aquele freguês da segurança social é afinal proprietário de um duplex no Central Park e um barco ancorado na marina de Manhattan, Rybakov acrescenta: “posso ser psicótico, mas não sou idiota”.

O autor do livro, um dos melhores jovens romancistas de hoje, nasceu na então Leninegrado e emigrou para os EUA com os pais nos anos oitenta. A seguir à vitória de Donald Trump nas eleições admitiu que o seu primeiro pensamento foi: “nasci e cresci numa distopia — terei de vir a morrer noutra?”. Os primeiros tempos da transição para a Administração Trump parecem indicar que esta pergunta não é descabida. Praticamente todas as nomeações para a nova equipa da presidência vieram dos escalões dos ideólogos mais fanáticos contra a escola pública, a proteção ambiental e o embrião de sistema nacional de saúde que Obama tentou montar. Para piorar o quadro, aponta-se como chefe da diplomacia norte-americana um homem, Rex Tillerson, que reúne todas as qualidades trumpianas: não só é o presidente da petrolífera campeã da poluição ExxonMobil como é o melhor amigo de Vladimir Putin nos EUA. “Amigo”, evidentemente, significa: Putin e Tillerson já deram muito dinheiro a ganhar um ao outro. Como na doutrina do Sr. Rybakov: Rússia em todo o lado. Onde quer que vás… Rússia.

No entanto, é preciso ter ido à Rússia para compreender o que isso significa. Na Rússia, tudo o que damos por adquirido — escrever num jornal ou dar uma aula ou participar num debate ou organizar uma associação — está assente na areia movediça dos humores do sistema. Caso esses humores se perturbem, como com uma certa universidade independente que conheci, uma visita dos bombeiros é suficiente para declarar que o edifício terá de ser encerrado sine die. A medida é adequadamente ambígua, para deixar as vítimas sem dúvidas sobre a realidade da pressão política mas todos os outros com a plausibilidade de negar essa interpretação. Os opinadores e intelectuais que a partir do Ocidente teorizam sobre a importância benevolente da Rússia de Putin deveriam pensar no que significaria fazer algo em sinal contrário por lá.

O mesmo valeria para os políticos anti-sistema (na verdade, anti-política, quando não anti-democracia) na Europa, se estes se preocupassem com o destino que é dado aos opositores mais recalcitrantes na Rússia — uma bala vinda de algures disparada por não-se-sabe-nunca-quem. Mas para eles só interessa o mesmo que a Putin: não tentam sequer provar que na Rússia as coisas são melhores, mas antes que elas são más em todo o lado.

No mês passado, numa gala televisionada, Putin perguntou a um menino de nove anos onde acabavam as fronteiras da Rússia. “No estreito de Bering”, respondeu o rapaz. “As fronteiras da Rússia não acabam nunca”, interrompeu o Presidente, perante o riso geral. Ele não poderia querer dizer, como alguns mais assustados interpretaram, que a Rússia estava preparada para invadir (mais) outros países, embora a ameaça estivesse implícita. Claro que Putin está preparado para invadir alguns, mas não todos. O que ele estava a expor era a doutrina do Sr. Rybakov: que em todo o lado viceja a corrupção, a hipocrisia mais ou menos organizada e o desrespeito pelos direitos humanos como na Rússia. Psicótico, mas não idiota.

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