Renzi vai a votos no referendo a que juntou a sorte de Itália

Daqui a uma semana os italianos votam numa consulta constitucional que o Wall Street Journal escreve ser mais importante do que o “Brexit” para o futuro da UE. Talvez, mas é preciso ter alguma calma.

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Renzi prometeu demitir-se se as suas reformas forem chumbadas em referendo Alberto Pizzoli/AFP

Itália não é um país qualquer e a União Europeia não vive o seu melhor momento. Daí a levarmos à letra tudo o que se tem escrito na imprensa europeia vai um bocadinho. “Referendo italiano guarda a chave para o futuro imediato do euro”, titulou o colunista Wolfgang Munchau no Financial Times. “A 5 de Dezembro, a Europa pode acordar para uma ameaça imediata de desintegração”, continuava. O mundo pós-eleição de Donald Trump não é igual ao de 8 de Novembro, mas respiremos fundo.

A votos, no referendo constitucional de 4 de Dezembro, vai o fim do “bicamerismo perfeito”, um sistema em que Câmara dos Deputados e Senado têm mais ou menos o mesmo poder. A Câmara Alta passaria a ser nomeada e constituída por representantes regionais, perdendo grande parte dos poderes. A ideia, defendida e promovida pelo primeiro-ministro, Matteo Renzi, que se deverá demitir em caso de vitória do “não”, passa por facilitar a aprovação de leis.

Para perceber o que está em causa é preciso ainda saber que estas mudanças se coordenam com uma nova lei eleitoral, já aprovada pelo Parlamento mas actualmente a ser questionada na Justiça. A Italicum pretende reforçar a maioria na Câmara dos Deputados, dando ao partido que obtiver 40% dos votos um prémio que corresponde a ter obtido 54% dos lugares - se nenhum partido chegar aos 40%, está prevista uma segunda volta entre os dois mais votados.

A ideia é acabar com a instabilidade política (e de caminho, deitar fora uma lei eleitoral muito confusa, que já desencadeou várias crises, a principal em 2013, quando ninguém ganhou o prémio de maioria no Senado) num país que conheceu 65 governos desde 1945, reforçar muitíssimo o partido mais votado e, de caminho, o seu candidato à presidência do executivo.

Regressemos às palavras de Munchau. Nelas deve ler-se o receio de uma vitória futura do Movimento 5 Estrelas. O partido-movimento fundado por Bepe Grillo (comediante que se tornou conhecido com comícios anti-Silvio Berlusconi), o mais votado em 2013 (enquanto partido, a esquerda e a direita estavam organizadas em coligações) está quase empatado com o Partido Democrático, de Renzi, nas intenções de voto, e propõe-se a referendar a continuação de Itália no euro.

“Foi Renzi que criou a crise ao unir o futuro do seu governo ao teste errado [o referendo]. Os italianos não deveriam ser chantageados. Renzi teria feito melhor em pedir mais reformas estruturais em tudo, deste a reforma do vago sistema judicial à melhoria do pesado sistema de educação”, escreve a revista Economist, num texto em que defende a vitória do “não”. “Renzi já desperdiçou quase dois anos a brincar à Constituição. Quando mais cedo Itália voltar às reformas reais, melhor para a Europa.”

Renzi diz que se demite se o “sim” não vencer e o mais provável é que o “não” vença e Itália acorde sem primeiro-ministro no dia 5 de Dezembro. Dito isto, para quem receia uma vitória do 5 Estrelas, essa ficará muito mais dificultada sem as alterações constitucionais e sem a lei eleitoral que o Tribunal Constitucional ameaça declarar ilegal logo depois da consulta.

O “Brexit” e Espanha

Os receios não desaparecem por isso. “Uma vitória do ‘não’ influenciará o clima político para em todo o continente europeu”, escreve o Wall Street Journal, a pensar nas presidenciais francesas, em Abril, e nas legislativas alemãs, em Outubro (vai haver ainda eleições gerais na Holanda e Áustria). “O voto italiano é mais importante do que o ‘Brexit’”, insiste.

Relativizemos, afinal dias depois da vitória da saída do Reino Unido da União Europeia, os espanhóis reforçaram a votação de Mariano Rajoy nas segundas e últimas legislativas de um ciclo especial, ao mesmo tempo que não deram mais votos ao partido saído dos Indignados, o Podemos, como se esperava.

Relativizemos, afinal trata-se de Itália. Um país muito habituado a viver sobressaltos, ainda que seja também, é certo, “um sismógrafo”, como descreve Marc Lazar, professor da Sciences Po de Paris. “Regista com minúsculos tremores políticos o que depois se espalha para a Europa e para o resto mundo em choques maiores.”

Tudo verdade, tanto como dizer que todas as sondagens (são proibidas nas últimas semanas) dão a vitória ao “não” e que já ninguém se lembra das sondagens terem acertado no resultado de uma votação importante (“Brexit”, presidenciais nos Estados Unidos, primárias da direita francesa, com a vitória na primeira volta de François Fillon). Para ajudar aos caos, em todos os inquéritos surgiam entre 24 e 26% de indecisos.

Cenários e o alívio

Então, se o “não” vencer como se prevê, Renzi vai entregar a sua demissão ao Presidente, Sergio Mattarella, e este terá de a aceitar. O antigo ministro democrata-cristão terá então várias alternativas que se podem dividir em dois grandes cenários: ou marca eleições antecipadas (o que fará Bruxelas tremer) e depois é preciso perceber com que lei eleitoral estas se realizam (na prática, a Italicum está em vigor até à decisão do tribunal), ou nomeia um governo provisório – reconduzindo Renzi, escolhendo outro membro do PD ou nomeando um muito italiano “governo técnico” para fazer outra lei eleitoral e gerir os destinos do país até às legislativas, marcadas para 2018.

A questão de reconduzir Renzi ou de escolher outra figura do centro-esquerda complica-se porque o partido está em crise e a oposição ao primeiro-ministro vai assumir-se ainda mais com a sua previsível derrota. Recorde-se que Renzi nunca foi eleito pelos italianos, tendo chegado ao poder através de um voto no interior do partido, em que retirou a confiança ao então primeiro-ministro, Enrico Letta, em Fevereiro de 2014. De resto, espera-se que o 5 Estrelas avance com um voto de desconfiança no Parlamento logo depois de contados os votos.

Baralhando e voltando a dar, Renzi vai perder a aposta com toda a probabilidade e Itália viverá um período imediato de instabilidade, com consequências graves principalmente para a sua débil economia. Mas o mais certo é que de tudo isto saia um cenário antigo, à italiana, com uma grande coligação a juntar o centro-esquerda e o centro-direita no governo, ou num governo provisório ou depois da próxima ida às urnas.

Com o fracasso previsível da Italicum e o chumbo da reforma constitucional, o 5 Estrelas (que depois das eleições se poderia coligar com a xenófoba Liga Norte) vai ficar mais longe e não mais perto do poder. Os italianos não ganham muito com nada disto, mas Wolfgang Munchau e a Economist poderão respirar um pouco de alívio.

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