Guterres quer apostar na prevenção de conflitos, o grande fracasso da ONU

Foram os dez anos na agência das Nações Unidas para os refugiados que lhe valeram o doutoramento honoris causa da Universidade Europeia. E foi aí que concluiu que a prioridade tem de ser “evitar as tragédias a que estamos a assistir”.

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António Guterres foi recebido pelo chefe do Governo espanhol, Mariano Rajoy AFP

Chegou atrasado mas sorridente. Entrou na sala minúscula que um pouco antes tinha sido percorrida por dois seguranças e um cão e perguntou aos jornalistas que o aguardavam se eram espanhóis ou portugueses. Os dez minutos comunicados inicialmente já tinham passado a sete e foi mesmo esse o tempo que António Guterres ali ficou. Teria permanecido um pouco mais – e respondido a uma quarta pergunta – não fosse a insistência num tema: estes são tempos em que o secretário-geral eleito da ONU não comenta um mundo com o Presidente eleito Donald Trump na Casa Branca.

“A minha prioridade fundamental como secretário-geral das Nações Unidas – e a lição que trago do ACNUR – é que é preciso investir na prevenção. É preciso investir na mediação dos conflitos, na resolução desses mesmos conflitos, para evitar as tragédias a que estamos a assistir no mundo de hoje”, afirmou Guterres em resposta ao PÚBLICO na curta conferência de imprensa que deu minutos antes de receber, na Universidade Europeia de Madrid, o doutoramento honoris causa pelo seu trabalho à frente do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.

Os dez anos que Guterres passou na agência da ONU foram os mais difíceis da história desta, os da maior crise de refugiados desde a II Guerra. Os tempos que o esperam como secretário-geral serão pelo menos tão complexos, possivelmente mais.

“Quando se trabalha dez anos com as populações mais vulneráveis do mundo, aquelas que mais foram vitimizadas por esta multiplicação de conflitos é inevitável sentir um forte impulso para poder fazer qualquer coisa, não apenas para ajudar os refugiados, mas sobretudo para evitar que haja refugiados. E isso tem a ver com a diplomacia para a paz”, afirma Guterres.

Mesmo porque tem havido progressos no mundo, mas são outros. “Creio que hoje a maior dificuldade das Nações Unidas é exactamente em relação aos problemas de paz e segurança”, sublinha o secretário-geral nomeado, que começa a sua nova função a 1 de Janeiro de 2017. “Fizeram-se grandes progressos sobre o desenvolvimento sustentável e os seus objectivos, houve grandes progressos em relação ao Acordo de Paris [de combate às alterações climáticas] mesmo que haja questões legítimas neste momento sobre as dificuldades que pode vir a haver no futuro imediato. Mas se nalguma coisa a comunidade internacional tem falhado, tem sido em matéria de paz e segurança.”

O investimento urgente “na mediação e resolução de conflitos” serve “para garantir que, para além de uma redução do sofrimento das pessoas, há um aumento da nossa segurança colectiva”, nota. “Hoje, há uma ligação clara entre os vários conflitos que estão interligados no mundo e esta nova ameaça global do terrorismo”, diz. E se há muitos pontos de divergência no mundo actualmente, “esse é um ponto de unidade que me parece muito importante em relação a todos os países que são membros das Nações Unidas”.

O mundo já era muito complexo quando Guterres apresentou a candidatura a secretário-geral e quando foi confirmado, a 13 de Outubro. Entretanto, ficou ainda mais, com a eleição para a Casa Branca de um não político que não valoriza instituições multilaterais, que não quer os Estados Unidos a resolver os problemas do mundo e que ameaça não financiar nem pôr em prática o Acordo de Paris.

Estabelecer diálogo com Trump

Barack Obama está na Europa e ninguém pensa noutra coisa. António Guterres está em Madrid para receber um doutoramento honoris causa e a pergunta é inevitável. O pequeno grupo de jornalistas portugueses pronunciou várias vezes o nome que Guterres se escusou a proferir, Donald Trump.

Repetindo que ainda não é o secretário-geral das Nações Unidas, o português afirmou que ainda não falou “com o Presidente eleito directamente” e que com  “o secretário-geral Ban Ki-moon vai ter uma reunião em breve”, esperando que “também neste campo haja uma transição harmoniosa”.

Fundamental, diz, é “estabelecer um diálogo efectivo com a nova Administração” americana. Isto porque os EUA são e vão continuar a ser “um parceiro fundamental do sistema” das Nações Unidas. “Portanto, a minha intenção é estabelecer um diálogo activo com a Administração norte-americana e procurar encontrar formas que permitam que a cooperação que tem existido se possa manter da melhor forma possível”, explica. “A única coisa que posso dizer é que me estou a preparar muito intensamente para o exercício das funções e naturalmente para poder discutir com todos os países, e também com os EUA, a melhor maneira de cooperar.”

Ainda houve tempo para Guterres recusar voltar a responder sobre Trump e para uma pergunta sobre a Síria, mais concretamente sobre Bashar al-Assad, que afirmou esperar que com o sucessor de Ban Ki-moon a ONU não se torne numa “sucursal do Departamento de Estado norte-americano”.

O futuro secretário-geral recusou “comentar entrevistas ou declarações” e disse apenas que “no exercício dessas funções há garantias de imparcialidade e independência muito importantes em relação a todos os parceiros”. Mesmo à Síria, de Bashar al-Assad, cuja reacção a uma revolta inicialmente pacífica está na origem da grande fuga síria – mais de cinco milhões são refugiados, outros sete são deslocados internos, “os mais vulneráveis entre os vulneráveis”, como dirá, daqui a pouco, noutra sala e com outra assistência, já “Dom António Guterres”, doutor honoris causa da Universidade Europeia.

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