Fúria da imprensa eurocéptica embaraça Governo de Theresa May

Ministra da Justiça defende independência dos juízes depois de tablóides terem chamado "inimigos do povo" aos magistrados que decidiram que o "Brexit" terá de passar pelo Parlamento.

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Para o Times, a reacção ao veredicto criou “um certo odor a Berlim nos anos 30” Benjamin Fathers/AFP

Com um dia e meio de atraso, a ministra da Justiça britânica saiu em defesa da independência dos juízes, numa tentativa para pôr cobro aos ferozes ataques da imprensa e dos políticos eurocépticos ao veredicto do Tribunal Superior que, quinta-feira, decidiu que o Governo não pode formalizar a intenção de sair da União Europeia sem o aval do Parlamento – uma decisão que, se for confirmada em recurso, agrava a confusão em torno dos planos do executivo para o “Brexit”.

A ira dos eurocépticos – que temem que a discussão no Parlamento sirva para adiar ou mesmo bloquear o “Brexit” – ficou bem pintada nas manchetes de sexta-feira, não só dos tablóides de direita, como do mais reputado (e igualmente eurocéptico) Daily Telegraph, que colocou na sua capa a fotografia dos três altos magistrados debaixo do título “Os juízes contra o povo”. O Daily Mail foi mais longe, numa primeira página em que tratava os juízes como “inimigos do povo” e “elitistas” que “desafiaram os votos de 17,4 milhões de eleitores” que votaram a favor do “Brexit”. Sajid Javid, ministro para as autoridades locais, foi igualmente muito crítico, ao classificar o veredicto como uma tentativa “inaceitável” para “bloquear a vontade do povo britânico”.

Adam Bienkov, director do site Politics.co.uk, numa ronda rápida pelas redes sociais diz ter encontrado inúmeras incitações ao ódio e à violência contra os magistrados e os dois principais litigantes do caso julgado pelo Tribunal Superior. “Matem-na e atirem-na para o lixo”, escreveu um utilizador do Facebook que se identifica como apoiante do partido eurocéptico UKIP referindo-se à gestora de investimentos Gina Miller, que deu a cara pelos cidadãos que iniciaram o processo. Outros, usando também as fotos dos juízes, recordavam que “a pena de morte ainda está em vigor para a traição e é isso que deve acontecer a estes traidores”.

“Seria fácil desvalorizar isto como ameaças vazias e esperamos que assim seja. Mas passaram menos de seis meses desde a morte de Jo Cox e já não é garantido que assim seja”, escreveu o jornalista, lembrando que o autor confesso do homicídio da deputada trabalhista, em plena campanha para o referendo, se identificou em tribunal como “morte aos traidores, liberdade para o Reino Unido”.

Repúdio à direita e à esquerda

Posições que chocaram não só os que defenderam a permanência do Reino Unido na UE, mas também vários dirigentes do Partido Conservador da primeira-ministra Theresa May. “Há alguma coisa que cheira a fascismo nestes ataques”, disse ao jornal The Times Dominic Grieve, deputado conservador e ex-procurador geral britânico. Em entrevista à BBC, o mesmo responsável sublinhou que “nas sociedades livres a imprensa pode dizer o que quiser”, mas “jornais como o Daily Mail deixam de ser diferentes do Völkischer Beobachter quando optam por fazer manchetes deste tipo”, afirmou, referindo-se ao jornal do partido nazi alemão. Uma comparação feita também pelo jornal conservador, que neste sábado escreve no seu editorial que a reacção ao veredicto criou “um certo odor a Berlim nos anos 30”.

Este tipo de retórica “ameaça a independência da nossa justiça”, disse também Bob Neill, presidente da Comissão de Justiça do Parlamento, sublinhando que “certas coisas que foram ditas sobre o veredicto “são profundamente escandalosas” e deveriam merecer o repúdio de May, que para já se limitou a anunciar que vai recorrer da decisão para o Supremo Tribunal, insistindo que pretende accionar o artigo 50 do Tratado de Lisboa até ao final de Março.

Questionada sexta-feira sobre a polémica, a porta-voz da primeira-ministra recusou condenar a cobertura feita pelos tablóides, dizendo “não acreditar que os ataques tenham minado o sistema judicial britânico”. Uma posição que só fez aumentar a pressão sobre o Governo, em particular sobre a ministra da Justiça, Liz Truss. Já neste sábado, a ordem de advogados de Inglaterra e Gales disse que Truss não poderia continuar calada perante os “ataques injustificados” feitos aos magistrados. “Um sistema judicial forte e independente é essencial para o funcionamento de uma democracia e o respeito pela lei”.

Perante o coro de protestos, a ministra publicou ao início da tarde deste sábado um breve comunicado, sublinhando que “a independência do sistema judicial é a fundação sobre a qual se ergue o respeito pela lei” e que a magistratura britânica é, por mérito próprio, “respeitada em todo o mundo pela sua independência e imparcialidade”. Sobre o veredicto em si, Truss diz apenas que “o Governo já deixou claro que vai recorrer”, dando seguimentos aos “devidos procedimentos legais”.

Daily Mail não recua

Uma reacção que o porta-voz dos trabalhistas para a Justiça disse ser “curta e demasiado tardia”. “Ela continua sem condenar os ataques dos que chamaram aos juízes inimigos do povo” e, por causa disso, “nos últimos dias grande parte da comunidade jurídica perdeu a confiança nela”, afirmou Richard Burgon.

Apesar dos protestos, não houve ainda recuo de nenhum dos jornais ou dos políticos que atacaram os juízes do Tribunal Superior. E na sua coluna neste sábado no Daily Mail, o editorialista Stephen Glover disse não acreditar que os magistrados se tenham sentido fragilizados pelo epíteto de “inimigos do povo”. “Imaginar que algo que isto possa ter um efeito terrível ou devastador sobre a sociedade britânica é de loucos.”

Os cidadãos que se constituíram parte no processo em julgamento dizem não querer travar a saída britânica da UE, insistindo apenas que o Governo não pode ter o exclusivo da iniciativa, tanto mais que o "Brexit" eliminará direitos que são actualmente consagrados aos cidadãos britânicos, como a livre circulação na UE. Argumentos que o tribunal colheu, insistindo que o executivo de May não pode, por decreto, anular a Lei das Comunididades Económicas, adoptada pelo Parlamento em 1972, abrindo caminho à entrada do país na UE. 

Mas ao atribuir um papel central ao Parlamento, onde a maioria dos deputados apoiou a permanência, o tribunal retira o exclusivo do processo ao executivo, onde ganhava força a via de um corte mais radical com a UE ("hard Brexit"), admitindo-se que os parlamentares usem a discussão para impor condições e mesmo exigir que o acordo final com os restantes Estados-membros possa ser sujeito a uma votação. 

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