Populista, disse mesmo populista?

Os populismos são a parte obscura das crises profundas.

A novela da Caixa vai-se esclarecendo e pode chegar depressa ao fim. Fico satisfeito, sobretudo se os próprios administradores tomarem a iniciativa de apresentar as suas declarações de interesses no Tribunal Constitucional, sem esperarem pelo que o parlamento certamente aprovará. Essa é a atitude normal e o que era preocupante era o desvio provocado pela sua exigência anterior, acomodada pelo governo. Mais, essas declarações devem ser públicas, dado que o interesse que se salvaguarda é o dos contribuintes, que são os accionistas da Caixa e têm o direito a receber a garantia de que os administradores não têm conflitos de interesses que perturbem a sua função. Mesmo o PS, autor do decreto-lei nefando, se juntou agora aos que preferem que se cumpra a lei que ainda está em vigor e que impõe o dever da transparência. Assim, e só assim, será assunto encerrado.

Ficarão os salários de marajá, mas sobre isso a convergência entre o PS e as direitas é implacável, até quando convoca o imaginativo argumento da putativa inconstitucionalidade de limitar os futuros pagamentos excessivos. Mas saberemos que não temos na Caixa administradores que sejam embaixadores de interesses financeiros particulares. Poderá sair algum administrador? Talvez e é melhor assim, pois se um administrador tem o topete de por como condição não responder perante os accionistas na garantia mais essencial que lhe pede o dono do banco, então o seu lugar é noutro lado. Também não é num banco privado, diga-se, porque nesse banco tem que apresentar a mesma garantia que a lei determina que preste no banco público (só os acionistas que lhe pagam o salário são diferentes)

Esboroa-se deste modo a tentativa de manter o privilégio do silêncio. Ele baseava-se num extremismo social, a arreigada convicção de que há uma elite que pode encomendar leis para si própria como fatos à medida, que pode fixar os seus benefícios acima de qualquer escrutínio e que, quando incomodada pela populaça que acha tudo isto estranho, pode simplesmente alegar ter um direito divino ao privilégio. Esta é a história de Portugal, entendamo-nos. É o que levou Alfredo da Silva ao gabinete do ministro das finanças para salvar o seu banco na crise de 1929, o que levou Champalimaud a exigir que o Estado lhe pagasse a Siderurgia, o que geriu as privatizações clientelares, o que alimentou o poder do BES, o que organiza a porta giratória entre os governos e a finança ou leva Durão Barroso para a Goldman Sachs e muitas outras desventuras ilustres.

Como esse privilégio é dificilmente defensável, ainda antes de aceitar cumprir a lei algum administrador ensaiou uma resposta curiosa. Ela apareceu pela prosa de um analista económico e é basicamente que é “populista” pedir transparência ou salários talvez menos do que milionários.

Se o assunto fica encerrado, o argumento esvai-se, mas é mesmo curioso. Porque “populismo”, um termo ambíguo da ciência política e refere-se normalmente a formas de mobilização popular em torno de um líder carismático, ou bonapartista, iludindo a representação e as diferenças sociais. Se essa for a receita, misturam-se na história situações muito diferentes, de Vargas a Peron, porventura de Le Pen a Trump. Na política europeia, populistas são aqueles líderes do Podemos que reivindicam a superação da divisão esquerda-direita, ou os do Cinco Estrelas em Itália. Os populismos são a parte obscura das crises profundas.

Mas o que não será certamente “populista” é a crítica a um governo (ou a um banqueiro), muito menos aquela que reclama o cumprimento da lei.

Ao tornar-se um jogo sem significado, esse pequeno insulto de “populista” revela simplesmente como a linguagem está contaminada ou como o privilégio se defende.

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