Esta América termina no Texas mas do outro lado "también hay sueños"

Entre El Paso, no estado norte-americano do Texas, e Ciudad Juárez, no estado mexicano de Chihuahua, não há sinais de uma multidão de imigrantes a invadir os Estados Unidos sem documentos.

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Alexandre Martins

Wile, “como em Wile E. Coyote”, cruza as ruas de El Paso e Ciudad Juárez no seu táxi amarelo há 11 anos, sempre a partir do lado norte-americano da fronteira, porque foi aqui que nasceu e cresceu. Habla español como a maioria dos habitantes de El Paso, no Texas, e tal como muitos deles atira o candidato do Partido Republicano para o caixote dos “ignorantes que não sabem falar”. Mas quanto mais ele fala enquanto conduz, mais se percebe que Wile é uma estranha espécie de Hillary Clinton possuída pelo “demónio” Donald Trump: vai votar nela, mas concorda que é preciso reforçar a fronteira com a terra onde os seus pais nasceram e ainda vivem.

“Hillary Clinton tem um projecto sério para a comunidade latino-americana e tem 30 anos de experiência, por isso é claro que vou votar nela”, diz Wile enquanto tenta decidir se abre as janelas do táxi ou deixa o ar condicionado ligado, que este calor do Deserto de Chihuahua perdoa conversas sobre política mas é implacável com quem gosta de manter a t-shirt tão branquinha como quando ela saiu de casa logo pela manhã.

A viagem de uma zona afastada do centro de El Paso até às portas de Ciudad Juárez vai bem, obrigado, graças a um dia sem muito trânsito e à experiência de Wile – “como em Wile E. Coyote”, repete com uma gargalhada. Mas há tempo suficiente para falar sobre essa rara mistura por estas paragens: um eleitor americano, filho de mexicanos, que vive na fronteira onde Donald Trump promete construir um muro “grande e lindo” e que só não pensa em votar nele porque lhe dá vontade de rir quando o ouve falar: “Há vezes em que não se percebe nada do que ele diz.”

“Mas concordo com o que o Trump diz sobre a imigração ilegal. Há muitas pessoas a tentar passar a fronteira, e é preciso controlar isso. Muitos deles podiam entrar nos Estados Unidos com um documento que custa umas centenas de dólares, mas preferem pagar milhares para entrarem aqui. Não devem vir fazer coisa boa. A maioria são pessoas que foram deportadas por terem cometido crimes e depois têm de voltar a entrar por outros meios”, diz este eleitor de Hillary Clinton com discurso de Donald Trump.

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Alexandre Martins

Fala no geral, e sobre outros pontos ao longo da fronteira, porque aqui entre El Paso, no estado norte-americano do Texas, e Ciudad Juárez, no estado mexicano de Chihuahua, não há sinais de multidão alguma de imigrantes a invadir os Estados Unidos sem documentos, como diria o candidato do Partido Republicano.

Os poucos arranha-céus de El Paso não chegam para fazer cócegas a este horizonte azul a perder de vista no calor do deserto, e o mais difícil nesta cidade norte-americana do Texas é não conseguir ver Ciudad Juárez do outro lado da fronteira.

São irmãs, El Paso e Juárez. E nem sequer são duas irmãs zangadas e de costas voltadas só porque o Governo dos Estados Unidos as separou com uma gigantesca vedação de aço no final da década passada – são, apesar disso, duas irmãs inseparáveis que se encontram todos os dias, a cada hora, a cada minuto, para fazer compras de um lado e do outro, para trabalhar, para comer, para dormir.

Ainda em El Paso mas já com a Ponte Internacional Paso del Norte ali ao fundo ao virar da esquina, por onde entram e saem a pé ou de carro 20 mil pessoas por dia, Juan Carlos Guzman tenta votar pela primeira vez para as eleições presidenciais nos Estados Unidos, apesar dos seus 55 anos de idade e 20 anos de vida e trabalho no lado norte-americano da fronteira.

“Acabo de me tornar cidadão americano e estas eleições estão a ser muito interessantes”, diz Guzman à entrada do Tribunal do Condado de El Paso, um dos 27 sítios onde os cidadãos locais podem votar desde segunda-feira passada – o dia grande é 8 de Novembro, mas muitos estados já abriram as portas a quem não pode ou não quer deixar tudo para a última hora.

As máquinas de voto estão no 3.º piso, 11 cubículos azuis dispostos lado a lado, com um estreito corredor a separá-los das mesas em que os coordenadores vão explicando as dúvidas dos eleitores.

O calhamaço em papel amarelo que serve de exemplo para o que espera Juan Carlos Guzman quando entrar na cabina de voto electrónico diz muito sobre a força de vontade que é preciso ter para votar aqui – Partido Democrata ou Partido Republicano? Donald Trump/Mike Pence, Hillary Clinton/Tim Kaine, Gary Johnson/William Weld, Jill Stein/Ajamu Baraka, ou outro qualquer no espaço que diz “write in”? E depois seguem-se páginas e páginas de candidatos a responsáveis disto e daquilo, em todo o sítio e mais algum no condado de El Paso. Antes de sair de casa para preencher isto tudo até ao fim, é melhor confirmar duas vezes se não ficou uma chaleira ao lume.

Guzman bem esperou, sentado numa pequena sala atafulhada de caixotes, montanhas de papel, dossiers, toques de telefone a cada minuto, duas fotocopiadoras que não páram de justificar a sua compra, e onde um trabalhador tenta de forma quase patética furar uma parede sem fazer muito barulho.

Logo na estreia como eleitor norte-americano, Guzman recebeu uma carta em casa a dizer que havia uma irregularidade qualquer, mas quando chegou a esta sala dedicada a esclarecer os cidadãos, a secretária disse-lhe ali daquele cantinho para onde foi atirada que afinal não havia irregularidade alguma. Mas a espera valeu a pena pelo quadro com uma jarra azul e três flores vermelhas pendurado ao lado da porta, sem assinatura mas de autoria bem conhecida: “Te quiero Mami.”

Só este tempo de espera, mais a cópia do gigantesco boletim de voto, fê-lo desistir por hoje e prometer voltar mais tarde, a outro local de voto. Mas garante que vai votar, e não tem problemas em dizer bem alto em quem e porque motivos.

“Como se costuma dizer, os Clinton são dois por um, e duas cabeças pensam melhor do que uma. E o outro senhor anda um pouco desorientado. Nós, latinos e hispânicos, todos os imigrantes, fizemos deste país um país mais forte”, diz Guzman sem deixar dúvidas de que Donald Trump não conta com o seu voto. Ainda assim, e tal como o taxista Wile, este mexicano nascido em Ciudad Juárez e naturalizado norte-americano há pouco tempo também compreende o reforço da fronteira.

“Antes era muito mais fácil passar a fronteira de forma ilegal, mas tudo mudou com os atentados de 11 de Setembro de 2001. Eles têm razão, é o país deles e devem cuidar dele. Cada país tem o direito de cuidar da sua fronteira”, diz, ainda sem ter interiorizado que este agora também é o país dele. Mas às eleições deste ano juntaram-lhe “muito picante”, diz Guzman – Clinton tem motivado muitas pessoas a votar, mas Trump não lhe fica atrás, “ao dar corda aos racistas, que estão a aproveitar o momento para saírem da toca”.

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O reforço desta e de outras zonas de fronteira é muito anterior à entrada em cena de Donald Trump – o candidato do Partido Republicano promete construir o tal muro “grande e lindo” ao longo de toda a fronteira, mas entre El Paso e Ciudad Juárez há uma vedação com cinco metros de altura lançada por George W. Bush e terminada por Barack Obama, que acompanha as curvas do famoso Rio Grande, aqui tão pequeno e vazio que se atravessa sem se molhar os sapatos.

A caminho de Ciudad Juárez pelos corredores pedonais da Ponte de Santa Fé, mais conhecida como Paso del Norte, depois de se pagar os “50 cents” da praxe porque para ir ao México todos os santos ajudam e até empurram, a multidão que se vê é de vendedores ambulantes, empenhados lavadores de pára-brisas e até um trio de jovens com tuba, saxofone e bateria que serpenteiam entre as filas de automóveis. É ali que ganha a vida quem não pode ir até ao outro lado da fronteira, no Texas, para esperar todos os dias por uma carrinha americana com propostas para quem não tem autorização de trabalho.

A meio da ponte, o barulho dos helicópteros norte-americanos que sobrevoam esta zona dia e noite e a fila interminável de jipes da guarda fronteiriça encostados à vedação de 200 em 200 metros não abafam as palavras pintadas já no lado mexicano, em letras bem grandes para se ver lá do céu: “De este lado también hay sueños.”

Chega-se a Juárez pela enorme avenida com o mesmo nome, e de repente há uma explosão de cores, cheiros e sabores, de lojas com música mais alta do que a vedação, de pequenas tendas como num gigantesco mercado onde não se percebe o princípio nem o fim.

A brutal guerra dos cartéis da droga em Juárez, entre 2008 e 2012, perdeu-se na memória das notícias, mas o medo do seu regresso sente-se de cada vez que alguém olha por cima do ombro, como acontece várias vezes a Juan Hernandez, nascido aqui mas criado ali, do outro lado da fronteira, e que aceitou voltar à cidade mexicana – apenas por um dia.

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O centro da cidade está apinhado de gente, velhos, novos, crianças com uniformes de colégio, autocarros a cair aos pedaços enquanto se arrastam pelas ruas cheias de buracos. Ainda há muitos cartazes a perguntar se alguém viu esta criança que desapareceu há anos, ou esta mulher de que ninguém sabe há meses. Mas há uma vida impensável em 2010, quando quem saía de casa geralmente era para matar ou morrer – oficialmente foram assassinadas 3622 pessoas, quase dez por dia, tantas nestas ruas onde agora se ouve o ídolo Juan Gabriel a cantar “Probablemente ya de mí te has olvidado / Y mientras tanto yo te seguiré esperando”.

Passar para o outro lado, para El Paso, é fácil para quem tem documentos, apesar dos olhares altivos e desconfiados de muitos agentes norte-americanos, mas também se arranja alguma coisa às escondidas da “la migra”. Se não se conhecer ninguém, basta ficar parado no fim da Avenida Juárez, às portas do Paso del Norte, a olhar para um lado e para o outro, um desconhecido desperta sempre atenções.

A conversa começa bem. Juan diz a dois jovens que este rapaz aqui ao lado quer ir para os Estados Unidos mas não tem documentos. Sim, sem problema: paga 500 dólares agora, levamo-lo para um hotel do outro lado e só paga os outros 500 dólares quando lá chegarmos. Mas a coisa começa a correr mal quando se torna evidente que só um deles fala, fala e fala e não pára de falar; o outro limita-se a olhar para este rapaz aqui ao lado de cima a baixo. Enquanto se encena uma conversa sobre se a coisa vai para a frente, os dois jovens desaparecem e Juan abre a passada até chegar ao primeiro táxi que encontra: “Los Zetas, eles agora mandam aqui e devem ter pensado que és um undercover.”

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De volta a El Paso, a entrada é mais difícil, porque para ir aos Estados Unidos poucos santos ajudam. Na zona onde os agentes da fronteira fazem perguntas, revistam a roupa e retêm os telemóveis, e onde não se pode falar com as outras pessoas na mesma situação, uma mulher sussurra um número de telefone, e pede por favor “que não se esqueça”. É para dizer à filha que ficou ali e que dali já não sai.

À direita, os agentes vão fazendo o seu trabalho de forma lenta e sempre com tempo para um momento de boa disposição: “Olha, chegou mais uma data deles, são uns seis ou sete, pai, mãe e filhos. Trata tu disso.” À esquerda, pelo menos quatro pequenas salas cheias de mães e de filhos, que brincam e saltam descalços em cima de finos colchões verdes. Ficaram ali e dali já não saem, pelo menos para os Estados Unidos.

Depois de um “boa tarde e tenha um resto de bom dia”, o agente que nos abre a porta para El Paso, e que estranhamente não se chama nem Lopez nem Aguirre, decide ficar um pouco mais à conversa sobre as eleições. E sim, Wile “como em Wile E. Coyote” e Juan Carlos Guzman, ele também diz que vai votar em Hillary Clinton.

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