Família nega ter escravizado homem durante 26 anos

Julgamento começou esta quinta-feira em Évora, à porta fechada. Alegada vítima morreu.

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Advogado dos arguidos à entrada do tribunal DR

Uma família de Évora acusada de escravizar um homem durante 26 anos negou esta quinta-feira em tribunal as suspeitas que impendem sobre si.

Segundo o despacho de acusação, a vítima – que foi resgatada em 2013 pela GNR da quinta onde trabalhava para a família – fazia trabalhos agrícolas no monte onde também morava, nunca tendo recebido um tostão de salário. “Por diversas vezes manifestou desejo de abandonar a quinta, ao que os arguidos lhe respondiam sempre que iria ter problemas com a polícia, por ainda não estar legalizado", pode ler-se no documento.

Chegado a Portugal vindo de Angola em 1975, José Nunes terá visto a família em causa – marido e mulher, com dois filhos que entretanto se tornaram adultos – ficar-lhe com os documentos de identificação. “Nunca lhe foram devolvidos, tendo um dos arguidos alegado sempre que não tinha conseguido tratar do processo de legalização”, refere também o Ministério Público. A acusação não menciona qualquer situação de cativeiro. Diz que o poder da família perante a vítima advinha do facto de José Nunes “se encontrar em território desconhecido, sem apoio da família”, o que terá criado “um clima de intimidação e de ameaças à sua liberdade” pouco propício à sua fuga. Na realidade, e conforme disse ao PÚBLICO logo após o seu resgate pela GNR, um dia chegou a fugir da quinta – tendo, porém, para lá regressado pelo seu próprio pé. Dizia que os patrões não lhe batiam. “Constrangeram-no a viver sem o mínimo de condições de habitabilidade, higiene, alimentação, trabalho e convivência, reduzindo-o a coisa sua e a um estado de sujeição total, tratando-o como ser destituído de dignidade humana”, acusa o Ministério Público.  

Além de escravidão, crime cuja moldura penal vai até aos 15 anos de cadeia, a família responde também por tráfico de pessoas e por detenção de armas proibidas, uma vez que durante o resgate lhe foram apreendidos uma caçadeira e um revólver para os quais não tinham licença.

José Nunes acabou por morrer de doença oncológica em Coimbra ao 65 anos, numa instituição que o acolheu depois de resgatado. Ainda teve tempo para prestar declarações às autoridades para memória futura, que agora servirão de prova em tribunal.

À porta da sala de audiências, onde o julgamento começou esta quinta-feira à porta fechada – apesar de o Ministério Público ter requerido que fosse público –, uma vizinha da quinta onde tudo sucedeu não se cansava de repetir: “Ele andava sempre à vontade no monte. Se não abalou de lá foi porque não quis.” Gostava do angolano, que lhe chegou a telefonar de Coimbra. “Nunca o vi maltratado, nem com fome. Agora o que se passava portas dentro, se lhe pagavam, isso já não sei.”

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