Merkel tirou candidata búlgara da cartola

Um ex-ministro dos Negócios Estrangeiros teme que a ONU tenha anunciado "um concurso público" e esteja num clássico "ajuste directo", à revelia da transparência prometida para a eleição do novo secretário-geral das Nações Unidas.

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Angela Merkel Reuters/AXEL SCHMIDT
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Kristalina Georgieva Reuters/FRANCOIS LENOIR

Três antigos ministros dos Negócios Estrangeiros, João de Deus Pinheiro, com Cavaco Silva, António Martins da Cruz, no governo Durão Barroso, e Freitas do Amaral, titular da pasta com Francisco Sá Carneiro e José Sócrates, e o antigo embaixador de Portugal nas Nações Unidas e ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus Seixas da Costa, avaliam, ao PÚBLICO, o anúncio da apresentação da candidatura da comissária búlgara Kristalina Georgieva ao cargo de secretário-geral da ONU. Destacam que a nova rival de António Guterres não passou pelo crivo de audiências ou das cinco votações no Conselho de Segurança e que o patrocínio de Angela Merkel a esta candidatura se assemelha a um número circense: Georgieva saiu da cartola.

“Anunciaram um concurso público e parece que querem fazer um ajuste directo”. Remetendo a estas fórmulas do Direito Administrativo, Diogo Freitas do Amaral, por duas vezes chefe da diplomacia portuguesa e presidente da Assembleia Geral da ONU entre 1995 e 96, refere-se ao processo desenhado com o intuito da transparência e que, desde a manhã desta terça-feira, conheceu um volte-face. O primeiro-ministro búlgaro, Boiko Borissov, perante os maus resultados obtidos pela sua concidadã e directora-geral da Unesco, Irina Bokova, anunciou a candidatura da comissária europeia do Orçamento e Recursos Humanos, Kristalina Georgieva a secretária-geral da ONU.

“Estamos numa fase terrível em que mesmo o funcionamento das Nações Unidas não é regulado pelo Direito mas pela força dos cinco grandes”, diz Freitas do Amaral, referindo-se à China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia, países com direito de veto no Conselho de Segurança. “Devia ser ilegal aparecer candidaturas de última hora, é uma bofetada aos candidatos que se submeteram às regras estabelecidas”, desabafa.

“Pode ser um contra senso, ilegítimo, mas não é ilegal”, contrapõe Francisco Seixas da Costa. “É contraditório com o novo modelo de maior transparência que se pretende implantar”, reconhece o diplomata. “Mas ninguém estava à espera que António Guterres fosse o melhor candidato avaliado, estavam à espera de uma mulher em geral e, em especial, de uma mulher do Leste, e Guterres furou este processo”, admite.

“Esta candidatura de última hora recorda o número do coelho a sair da cartola que, como se sabe, é um velho truque”, ironiza António Martins da Cruz. Contudo, desde a passada Primavera que nos círculos do Partido Popular Europeu o nome de Kristalina Georgieva circulava como plausível candidata a secretária-geral da ONU. Assim, o “coelho” não estava na cartola mas repousava no bolso da direita europeia. Não só da chanceler Angela Merkel, mas também do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker.

“Juncker teve o pior papel possível, havia candidatos de países da União Europeia que deviam ser tratados da mesma maneira, mas apareceu neste complot, é mil vezes pior do que fez a Durão Barroso”, acusa Freitas do Amaral. “Era [Juncker] uma pessoa séria e capaz, hoje já se sabe que sério não é muito e é incapaz por ter participado neste complot contrário ao processo democrático de selecção do secretário-geral da ONU”, destaca o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros. Quanto a Merkel, quem dirigiu a diplomacia com Sá Carneiro e Sócrates teme que tenha chegado já a um acordo com os Estados Unidos e a Rússia para apoiarem Georgieva.

“Pode ser uma candidatura de consenso, alia a origem do Leste com a sua condição de mulher, condições antecipadas como necessárias para dirigir as Nações Unidas”, admite Martins da Cruz. “A decisão está em Moscovo e em Washington, os Estados Unidos têm insistido muito que querem uma mulher à frente das Nações Unidas e esta candidatura de última hora favorece mais as pretensões dos EUA do que dos países membros não permanentes do Conselho de Segurança”, assegura.

No entanto, João de Deus Pinheiro não pondera que norte-americanos e russos colocassem problemas à candidatura de António Guterres. “Do que se trata é da pressão alemã, e Jean-Claude Juncker tem tido posições tão erráticas sobre tantas coisas, que não é para levar a sério nesta matéria”, destaca o chefe da diplomacia com Cavaco Silva. “No entanto, Georgieva e os que a apoiam têm muitas explicações a dar, e não são fáceis. Aliás, Guterres está a fazer bem em não fazer chicana sobre isto”, assinala: “António Guterres seria uma bênção para a ONU e, caso perca, seria uma bênção para Portugal porque faz cá falta.”

A eventualidade da candidatura da comissária europeia, que esta terça-feira entrou em gozo de licença sem vencimento, ter sido negociada por russos e norte-americanos é admitida por Seixas da Costa. Contudo, o antigo embaixador de Portugal nas Nações Unidas tem outra interpretação. “Kristaliana Georgieva é a candidata que a Alemanha utiliza para reforçar o seu poder entre os parceiros europeus dentro da ONU”, diz. À margem fica outra pista: a de que o apoio de Berlim a Georgieva, seria peça de um puzzle mais vasto, com a Alemanha a entrar, no futuro, como membro permanente do Conselho de Segurança. “O secretário-geral da ONU não tem forma de influenciar a reestruturação do Conselho de Segurança e não há condições de uma reforma nos tempos mais próximos”, conclui. 

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