Nem palavras nem imagens: "Nada pode descrever o que se passa em Alepo"

"Estamos a ouvir armas que nunca ouvimos antes", diz um residente da cidade. Retórica dos EUA, Reino Unido e França contra Rússia e Assad endurece, mas no terreno nada muda.

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Dois habitantes de Alepo percorrem escombros de bairro atingido por um bombardeamento Abdalrhman Ismail/Reuters

As palavras já não chegam para descrever o que se passa na cidade síria de Alepo, dizia o médico Moahmmad Abu Rajab. “As fotografias também não. Nada chega”, desabafou.

“Estamos a assistir à desumanidade, verdadeiros massacres, armas extraordinárias que nunca ouvimos antes, que fazem o chão tremer sob os nossos pés”, disse Abu Rajab ao diário britânico The Guardian.

Enquanto no Conselho de Segurança das Nações Unidas os poderes mundiais discordam e se fala de “barbárie” e de possíveis crimes de guerra, no terreno os ataques não páram.

Em Alepo, que já foi a segunda maior cidade da Síria, há cerca de 250 mil pessoas em território controlado pelos rebeldes. A sua conquista seria um enorme ganho para o regime de Bashar al-Assad, e por isso este está a levar o extremo a sua estratégia de “morram à fome ou rendam-se”, nas palavras do diário norte-americano New York Times.

Não foi só o volume do bombardeamento – o pior desde o início da guerra há quase seis anos, e que dura há quatro dias. São os seus alvos, como veículos e quartéis dos serviços de resgate, ou estações de distribuição de água.

Quando há bombardeamentos, quem ficar sob os escombros ali continuará. Vai ser quem estiver perto, ou a família, a tentar, com as próprias mãos, tirar sobreviventes, ou corpos, do local. Neste momento, disseram trabalhadores dos serviços de emergência à Reuters, há dois carros de bombeiros e três ambulâncias a funcionar na parte da cidade sob cerco. 

A Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) nota que há praticamente dois meses que esta parte da cidade não recebe qualquer ajuda do exterior. A esse problema junta-se a falta de água após um bombardeamento da aviação de Assad que atingiu uma estação de distribuição de água. Os poços são a única fonte de água, não potável. As doenças não vão tardar, alerta a Unicef.

Como falta tudo nos hospitais, especialmente sangue, os médicos fazem opções drásticas após cada novo bombardeamento. “Neste momento, os feridos mais graves são imediatamente amputados”, contou um médico à agência francesa AFP.

E as bombas usadas pela aviação do regime são tão poderosas que chegam a caves, para onde muitos dos habitantes se mudaram tentando escapar.

O enviado especial da ONU para a Síria, Staffan de Mistura, falou num “novo pico de horror” na reunião de emergência do Conselho de Segurança sobre a situação no país, que decorreu no domingo, depois de um acordo para uma trégua se ter desmoronado bombardeamento após bombardeamento.

Alepo é Sarajevo, é Guernica

Desde segunda-feira terão morrido pelo menos 162 pessoas na parte de Alepo controlada pelos rebeldes, segundo o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, organização síria com sede em Londres. Um hospital apenas disse ter recebido 180 mortos e feridos. Um grande número dos feridos – pelo menos 61 – são crianças.

Estados Unidos, Reino Unido e França usaram palavras fortes para a acção da Rússia, que apoia o regime de Bashar al-Assad, na reunião de domingo.

O que a Rússia está a fazer e a patrocinar não é contra-terrorismo”, disse a representante dos EUA, Samantha Power. “É barbárie.” “Em vez de procurar a paz, a Rússia e Assad estão a fazer a guerra.”

Barbárie foi também a palavra usada pelo embaixador francês à ONU, François Delattre, que comparou a ofensiva em Alepo a outros momentos de guerras: “Alepo é para a Síria o que Sarajevo foi para a Bósnia ou o que Guernica foi para a Espanha”, ou seja, o momento em que a diplomacia falhou. “Estas acções não podem ficar impunes”, disse.

“Bombas anti-bunker, usadas para a destruição de instalações militares, estão a ser usadas para destruir casas, dizimar abrigos, mutilar e matar dezenas de pessoas”, declarou pelo seu lado o embaixador britânico, Matthew Rycroft. “Resumindo, é difícil negar que a Rússia está, em parceria com o regime sírio, a levar a cabo crimes de guerra.”

A Rússia respondeu a Washington e Londres: “Notamos o tom e a retórica inaceitáveis dos representantes dos Estados Unidos e Reino Unido, que pode causar danos nas nossas relações”, disse o representante russo, Vitali Churkin, passando a descrever a “admirável contenção” do líder sírio.

A mudança de tom dos três actores foi notada por um antigo embaixador britânico no Líbano, Tom Fletcher, em declarações ao Guardian. “As declarações do Conselho de Segurança foram mais cruas”, notou. “Mostram que a recente política de confiar na Rússia para conter Assad está enterrada nos escombros de Alepo”, o que poderá querer “sinalizar uma nova fase”. Assad, que com o apoio da Rússia conseguiu reverter uma situação de perda de poder no terreno, está a aproveitar o espaço que uma Administração norte-americana na sua fase final potencialmente lhe dava para “se sentir livre para massacrar”, diz o diplomata. “Veremos agora se ele subestimou ou não a prontidão norte-americana para proteger os mais vulneráveis.”

Na imprensa americana, a opinião é que nada vai mudar nos próximos meses. É o que diz o editorial do Washington Post, notando o pouco espaço dado à Síria no discurso do Presidente Barack Obama na Assembleia Geral da ONU, argumentando que os esforços do secretário de Estado John Kerry não servirão para nada mais do que manter a situação nos próximos quatro meses, passando o problema para o Presidente que se seguir. 

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