“Escrevo romances em legítima defesa”

A Europa da liberdade morreu. O Ocidente vai perder a guerra com o islão. Já não há homens brilhantes, e os escritores não têm nada para contar. O olhar pessimista de Arturo Pérez-Reverte, o antigo repórter de guerra que escolheu a literatura para se salvar, mas não a usa para salvar o mundo.

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Arturo Pérez-Reverte veio a Portugal para participar no Festival Internacional de Cultura (FIC), em Cascais, e promover o romance Homens Bons, editado pela Asa. É uma história passada no século XVIII, em que dois académicos espanhóis viajam para França com o objectivo de trazer para o seu país os 28 volumes da Enciclopédia. A luta entre razão e obscurantismo alimenta as peripécias da narrativa, que pretende explorar literariamente as raízes históricas do atraso ibérico.

Por que razão um homem que viajou por todo o mundo como repórter prefere, como temas dos seus romances, a História à actualidade?
A História permite-nos compreender melhor o presente. O novo não é mais do que o passado que já esquecemos. Tudo já aconteceu. Quem não leu a Guerra de Tróia não compreende Sarajevo, quem não leu Xenofonte não compreende a guerra dos mercenários em Angola, em 1978. Sem História somos órfãos e incapazes de compreender. Por isso uso nos meus romances a História, como mecanismo de compreensão, como chave para o presente.

Nesse sentido, Homens Bons, tal como outros romances seus, não é propriamente um romance histórico.
Os meus romances são falsamente históricos. Homens Bons fala do Iluminismo, mas também do Homem e da Europa cultural do século XXI. E da Cultura como mecanismo de salvação em momentos de crise.

Está aí o paralelismo com o mundo de hoje? O obscurantismo está de novo a vencer a Cultura?
Naquela época, a Igreja Católica era o grande factor de atraso. O século XVIII foi a grande oportunidade para Espanha e Portugal de se modernizarem, mas optaram por permanecer nas trevas. Nós combatemos os franceses, que traziam a luz e as ideias. Combatemos do lado errado. Tenho um grande rancor histórico contra a Igreja, porque creio que é culpada do atraso de Portugal, Espanha e Itália em relação ao Norte.

Ainda hoje?
Sim, ainda hoje. A Igreja Católica não tem a mesma força, mas continua a tentar. Outra razão do nosso atraso ibérico, na minha opinião, é que Portugal e Espanha tenham de estar separados.

É partidário da União Ibérica?
Sim. Falava muito com Saramago sobre isso. A separação entre os dois países é contranatura.

Mas Portugal construiu-se como nação afirmando a sua diferença em relação a Espanha.
Não digo que devesse ser uma província espanhola, mas que houvesse algum tipo de federalismo. Eu sinto-me em casa em Portugal, os portugueses sentem-se em casa em Espanha. Acho que foi um erro grave que Filipe II, naqueles 60 anos em que Portugal foi espanhol, não tenha mudado a capital para Lisboa. Seria uma grande capital do império, virada para o Atlântico, e esquecendo as guerras e intrigas da Europa, que não nos interessavam nada. Portugal teria ficado satisfeito, porque teria sido tratado com a dignidade que merecia. Imagine o que teria sido a História.

De qualquer forma, agora é tarde.
Sim, é tarde. Mas devia haver nos governos espanhol e português um ministério do Iberismo, com ministros em contacto permanente, para tratar de todos os assuntos. Vivemos de costas voltadas, com um desconhecimento mútuo profundo.

Essa comunicação não pode fazer-se no quadro da União Europeia?
A boa e velha Europa dos direitos do homem, que iluminou o mundo, essa Europa que nasce na Bíblia, no Talmude, no islão, em Homero e em Dante, em Virgílio, Camões, Cervantes, Voltaire e Rosseau, na Enciclopédia e na Revolução Francesa, essa Europa foi condenada à morte. E isso é um problema de educação. Estamos a criar gerações de jovens que carecem de mecanismos culturais e históricos que lhes permitam saber quem são. Estamos a criar órfãos culturais. Todo o sistema educativo europeu está feito para esmagar a inteligência. Para a igualar à mediocridade.

Mas alguma vez foi diferente?
Antes era diferente, sim. Antes, o miúdo brilhante era apoiado, potenciado, porque sabiam que dali sairia a elite do futuro. Aqueles que poderiam iluminar os que o não são.

Mas isso não era característica de um ensino mais elitista? Talvez o nível médio tenha descido porque agora muitos mais têm acesso à educação.
Não. Uma coisa é todos terem acesso, que é um princípio irrebatível. Outra coisa é que os brilhantes não tenham direito a subir a um patamar superior. Se numa turma há um medíocre e um brilhante, o medíocre não pode ficar para trás, mas o brilhante não pode ser mandado para trás do medíocre. Ou estaremos a esmagar a inteligência. Veja os políticos. Onde está um Churchill? Um Adenauer? Um De Gaulle, um Kennedy?

Mas ainda se ensina História nas escolas.
É uma História desnatada, pasteurizada, homogeneizada, sem referências.

Os protagonistas dos seus romances são as grandes figuras históricas, ou indivíduos excepcionais, heróis. Mas a ciência histórica de hoje não dá tanta importância às figuras proeminentes como dá aos fenómenos sociais, económicos e mentais, aos povos.
O povo fez a Revolução Francesa. Mas dirigido por intelectuais. O mesmo com a Revolução Russa. Sem personalidades brilhantes, carismáticas, não há possibilidade de que o povo faça algo de positivo. O povo, sozinho, não faz nada. Precisa de orientações e de líderes. O problema da Europa neste momento é que não tem líderes. O melhor que conseguimos é Merkel. Rajoy é um medíocre. Portugal está como está.

Há também forças de contestação, de mudança.
O mundo não muda sozinho. Fazem falta mecanismos que impulsionem, e os mecanismos são pessoas, seres humanos inteligentes.

Não são as forças económicas, as massas…
Não, não. Pode haver forças, mas quem as orienta são os líderes, que criam os carris que devem trilhar a evolução da História. Se essa gente desaparece, e está a desaparecer na Europa, a História não encontra os carris, e dispersa-se, gasta a sua energia em nada. Fazem falta Hegel, Kant, Spengler, Aristóteles, Platão.

E fora da Europa, há esperança? As culturas asiáticas…
Eu sou ocidental. A minha cultura é esta, não me interessam as outras. De que me vale a cultura ascética, a cultura africana? Respeito-as, mas não são a minha. Não ma podem substituir. A minha cultura é esta e eu sofro com ela.

Mas falou da civilização da Bíblia, do Talmude, do Islão, de Homero. Não há portanto uma guerra de civilizações.
Há, sim. Hoje há uma guerra de civilizações, uma guerra social entre o islão e o Ocidente. Porque o islão é incompatível com a democracia.

O islão, ou os radicais islamistas?
O islão. É incompatível com os nossos valores. Repare, o comunismo fracassou no islão.

Também fracassou no Ocidente. Fracassou em todo o lado.
Sim, mas sobreviveu algum tempo. O islão é incompatível com a democracia.

A história do seu livro mostra como já no século XVIII o catolicismo era incompatível com as Luzes e a Razão.
Sim, mas no Ocidente lutámos contra isso. Houve uma grande e sangrenta luta para nos livrarmos das grilhetas que a Igreja Católica nos impôs. No islão não houve essa guerra. E nós não podemos agora renunciar a séculos de luta pelas liberdades e direitos. Para que a minha filha possa usar minissaia na rua, ou o teu filho possa dizer “Cago-me em Deus”, sem que o executem como blasfemo. Custou-nos muitos séculos de sofrimento, de guerras e de mortos. Mas eles não o fizeram.

Mas a civilização europeia é constituída também por elementos da civilização islâmica.
Isso é outra coisa. Portugueses, espanhóis, italianos, franceses vimos de uma civilização que esteve em contacto com o islão. E o islão deixou-nos coisas, tanto no sangue como na cultura, depois de muitos séculos. Mas essa herança islâmica evoluiu connosco. Tal como a herança cristã também evoluiu.

Isso não prova que o sistema democrático poderia hoje integrar várias culturas e religiões, incluindo o islão?
Não é possível. É compatível com a democracia que, por exemplo, uma mulher não possa ser tratada por um médico homem? Não, o islão não vai mudar, e é incompatível com a democracia.

Vamos então ter uma guerra de civilizações, como no tempo das Cruzadas?
Já estamos a ter uma guerra de civilizações. Com uma diferença importante: é que desta vez vamos perdê-la.

Porquê?
Porque o Ocidente é débil, medíocre, cobarde. Tenta ser politicamente correcto, é velho, gordo, acomodado, cheio de tecnologia. Enquanto o islão tem fome, tem rancor, tem ódio, tem juventude, tem tomates. Não tem nada a perder e tem muito a ganhar. Por isso vamos perder a guerra – mas não merecemos ganhar.

A civilização ocidental, democrática, vai desaparecer?
Sim. Dentro de 20 anos, chegarão os fascismos. Haverá movimentos neonazis vitoriosos por toda a Europa.

Chegarão ao poder por via eleitoral?
Sim. As pessoas vão escolhê-los. Mas eu já não vou cá estar, já não me importa.

Não haverá quem resista a isso?
Quem vai resistir? Onde estão as elites que vão resistir?

Os jovens, com as tecnologias…
A Internet é uma ferramenta estupenda, mas não hierarquiza a informação. O que eu ou Vargas Llosa ou Saramago possamos dizer, e o que um filho da puta analfabeto possa dizer estão ao mesmo nível. Não há diferença. Aliás, o que disser o filho da puta analfabeto terá mais repercussão, porque será mais violento. É o receptor que tem de fazer a selecção. Mas o receptor ocidental não está intelectualmente preparado para isso. Por isso a Internet não vai servir para melhorar o mundo, mas para piorá-lo.

Na Praça Tahrir, no Cairo, vi jovens com ideais de liberdade organizarem-se através da Internet.
E eu estava no Irão quando chegou Khomeini, e vi os mesmos jovens gritarem “Liberdade, liberdade”. Esses jovens estão agora todos cheios de barbas e de medo, não se atrevem a falar em voz alta. As Primaveras árabes também foram apropriadas pelos “khomeinis”.

Não acredita que, tanto em Teerão como no Cairo, aqueles momentos tenham sido genuínos?
Sim, foram genuínos, mas o islão é incompatível com os movimentos genuínos da juventude. Onde estão os jovens da Praça Tahrir? Onde estão os jovens de Teerão? Estão nas prisões ou aceitaram usar barba e turbante, porque não podem sobreviver.

Muitos desses jovens de barba e turbante sentem que estão a participar numa revolução, combatendo as injustiças do Ocidente.
E têm razão. Mas eu sou ocidental. Não posso estar aqui e aplaudir os de lá. Se desfruto dos direitos e liberdades da sociedade ocidental, não posso aplaudir os que a querem destruir. A mim, tanto me faz. Tenho 65 anos e uma biblioteca. A minha vida já não vai mudar.

A verdade é que continua a escrever.
Escrevo, porque me dá prazer. Escrevo para recordar as minhas viagens, os amigos, as mulheres que fodi. Tenho a minha vida resolvida, económica e profissionalmente. Mas as histórias dão-me prazer. Imaginá-las, escrevê-las. Um romance, para mim, significa viver num mundo de felicidade pessoal durante um ano ou dois. Viajo, leio, penso, é maravilhoso. São momentos em que tudo é possível. É como estar apaixonado. E ainda por cima me pagam, e bem, os leitores lêem-me, e gostam. É perfeito.

Acha que essa vida aventurosa, como a de uma personagem dos seus próprios romances, contribui para o êxito? Ao fazer com que o leitor se projecte no escritor como alguém que tem uma vida apaixonante?
A minha vida não é apaixonante por ser escritor. O que torna uma vida apaixonante são as viagens que fizemos, as aventuras que vivemos. Os livros são apenas um resultado disso.

Mas a literatura está em crise…
Eu não estou em crise.

Qual é a sua explicação para isso?
Às vezes pego num livro, e penso: este tipo, para que escreve ele? A quem importa saber que ele se levantou de manhã, que tem uma vida triste, que a mulher o deixou, que o seu filho é drogado, que se sente asfixiado pela vida… Para isso não vale a pena ler. Basta olhar em volta. O que eu quero é que me contem histórias interessantes, que me façam reflectir, pensar, sonhar, que mudem a minha vida. Se, quando terminar a leitura de um livro, a minha vida não tiver mudado para melhor, ou é um mau livro, ou eu sou um mau leitor. Um livro que não muda o olhar do leitor é uma merda de livro. E o mundo está cheio de merdas de livros que não mudam nada. São apenas fruto da vaidade onanista de autores que não têm nada para dizer.

Quando há tantas alternativas de entretenimento, o que pode fazer as pessoas continuarem a procurar os livros? As histórias?
Contar histórias sempre terá futuro. Se lermos o teatro grego, vimos que já lá estava tudo. Sófocles, Eurípedes, Aristófanes já trataram os temas do incesto, do adultério, da vingança, do tesouro escondido, do mistério, da viagem. Já tudo foi escrito. O que faz a literatura? Toma os temas eternos e adapta-os à época de cada autor. Homero, Shakespeare, Camões, Eça, Saramago, Lobo Antunes encontraram formas de contar, para o seu momento, os temas de sempre – porque as pessoas precisam de ter essas histórias sempre na cabeça, lendo os clássicos, ou os escritores modernos que prolongam os clássicos. E vai ser sempre assim. As pessoas sempre terão necessidade de que lhes contem histórias. Eu, no meu modesto território, sou um desses contadores de histórias.

A literatura é para todos?
Sim.

Mas a maioria não lê.
Não lê, porque não sabe como é bom ler, porque não se educa para a leitura. Os planos de estudos são feitos por gente que não lê e que não sabe o que dar às crianças para ler. Mas quando uma pessoa encontra algo de que gosta…

As pessoas não lêem porque os livros não são interessantes?
Se tens um escritor que viveu, viajou, foi às guerras, fodeu mulheres, em África, na América, na Ásia, durante 20 anos, teve medo, dormiu em quartos hotel onde lhe passavam baratas por cima, cagou sangue, teve amigos leais, conheceu assassinos e heróis, esse escritor tem coisas para contar. Mas quando um filho da puta que não fez mais nada do que beber copos num bar se atreve a escrever 500 páginas sobre a sua interessante personalidade, vá apanhar no cu!

Há grandes escritores que nunca saíram da sua cidade, como Kafka.
Mas era um génio. E génios há poucos.

Se não somos génios, temos de viajar.
Sim. Agora, se não és génio, nem viajas…

Há escritores que preferem trabalhar a linguagem…
Mas então, se não conhecem o mundo, têm pelo menos de conhecer os livros. Um escritor português, por exemplo, tem de conhecer, primeiro, Grécia e Roma, porque é de onde vem tudo. Depois, a literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII, Camões, etc., quando se forma a língua. E a literatura europeia do século XIX, Tolstoi, Dostoievski, Eça de Queirós, Galdós. E tem de ler Thomas Mann, Conrad, Faulkner, Kundera. Não leu nenhum desses, mas conhece Foster Wallace e Houlebecq? Então é um filho da puta, não pode ser escritor. E pensa que descobriu coisas que existem desde os gregos.

Os escritores têm a obrigação de ir conhecer o mundo, para nos falarem dos seus problemas?
Não. O escritor não é uma missão humanitária, não é uma ONG. Um escritor escreve por prazer. O seu trabalho pode vir a ser útil para os outros, mas não é isso que o move. Há escritores militantes, que denunciam os problemas do mundo, mas não é o meu caso.

Mesmo sem ser militante, trata, no seu livro, de problemas contemporâneos, através de uma alegoria histórica.
Porque isso me preocupa a mim. Esses filhos da puta que estão a chegar a Lisboa de calções e chinelos e que estão a foder a cidade de forma irremediável… Eu vim há muito tempo a Lisboa porque li Pessoa, Camões e Eça de Queirós. Vim para encontrar a realidade que amava nos livros. Esses turistas filhos da puta nem sabem quem foi Pessoa. Vão à Brasileira para fazer uma foto com ele, e não sabem quem ele é, nem nunca saberão na puta da sua vida. Eu preocupo-me com isso porque eles estão a foder-me a mim, ao foderem a minha Lisboa. Não escrevo para que o mundo seja melhor. Eu escrevo romances em legítima defesa.

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