(É o Assad) Don’t hold your breath

Bombardear camiões com ajuda e símbolo da ONU horas depois do fim de uma trégua e quando os líderes do mundo estão em Nova Iorque a debater a Síria? Porque não?

Conversa entre dois sírios (ambos no exílio, em duas cidades diferentes dos Estados Unidos), madrugada de terça-feira, no Facebook:

Sírio de Homs: “Esta é a última oportunidade para o mundo reagir (to prove itself), ele bombardeou literalmente a ONU”.

Sírio de Damasco: “Podes esperar sentado (Don’t hold your breath)”.

O estudante Amer Ghali tem razão, o activista Kenan Rahmani também.

Na segunda-feira, o cessar-fogo que o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, descreveu como “última hipótese para salvar uma Síria unida” foi declarado “clinicamente morto”. O dia era importante, o sétimo da trégua, apesar da violência que recomeçara já na sexta-feira e domingo se tornava incontornável, com o regresso dos bombardeamentos aos bairros de Alepo onde mandam os grupos da oposição ao regime.

Se continuasse em vigor, contra os factos e a lógica, como não espantaria na Síria, essa última hipótese talvez pudesse ter tido consequências. Sim, havia já combates, ataques aéreos, mas esta trégua não deixava ainda de ser o que de mais parecido parte do país teve com paz nos últimos cinco anos. Quatro dias, quatro, sem notícias da morte de civis. Ao mesmo tempo, ao sétimo dia, a ajuda que devia estar a ser distribuída desde a primeira hora ia finalmente a caminho de Alepo, dos tais bairros onde o poder de Bashar al-Assad não chega e isso, bem, isso é algo com que o ditador obviamente não sabe lidar.

Assad tinha avisado, como sempre, aliás, antes de qualquer assomo de acalmia ou tentativa de fazer impor a diplomacia, que se preparava para “reconquistar” toda a Síria. E então? Se ligássemos às palavras, se as levássemos, por um momento que fosse, a sério, nada se discutia nunca sobre a Síria e o terror a que milhões de sírios tentam fugir ou sobreviver.

Então, trégua morta, “clinicamente”, pelo menos, e “Inês é morta”?. Não, pensou a ONU e o Crescente Vermelho Árabe da Síria. Afinal, salvar gente que não tem o que comer, pessoas em hospitais improvisados (os que ainda não foram bombardeados) à espera de medicamentos ou tubos ou agulhas para poder acreditar que vão continuar vivas… Talvez valha a pena, certo?

Claro que sim, ainda mais hoje é 19 de Setembro, começa a Assembleia Geral das Nações Unidas, os líderes do mundo estão reunidos em Nova Iorque e, nem de propósito, estão a discutir a Síria. Se não hoje, quando?

Se não hoje, quando, pensou também Assad. Decidiu bombardear os camiões com ajuda e símbolo da ONU. Debaixo das bombas ficaram 12 membros do Crescente Vermelho, incluindo o seu director, sírio. A mesma organização que, tal como a ONU, foi acusada por dezenas de ONG de “permitir que Assad manipule a distribuição de ajuda” e continue a usar a “fome como arma de guerra”. E então? Se mexe e está na Síria é um alvo legítimo, assim pensa Assad.

Foi intencional? Assad não nos iria desiludir. Aconteceu só porque sim ou ajuda os líderes estarem em Nova Iorque, todos juntos, entre uma cimeira organizada pelo secretário-geral, Ban Ki-moon (segunda-feira), e outra (na terça), dedicada a aumentar os compromissos de acolhimento e dinheiro com os refugiados do mundo (4,9 milhões são sírios) promovida por Barack Obama? No arranque da última Assembleia Geral da ONU de Ban Ki-moon e do Presidente americano? Ajuda, claro. Também pode ter sido vingança pelo bombardeamento de sábado, que matou dezenas de soldados sírios a combaterem os radicais do Daesh, um engano terrível da coligação liderada pelos EUA (a própria Rússia diz ter sido um “erro de coordenadas”).

Assad dificilmente erra ou age por engano. Age com total impunidade porque o resto do mundo o fez acreditar que pode. E pode. Certo é que Kerry e Obama e Ban estão quase, quase de saída e ele permanece no seu palácio presidencial, na bolha de onde decide matar sírios sabendo que ninguém lhe toca.

Os russos negoceiam quando Assad deixa – mesmo antes, os russos ajudam Assad a ganhar posições no terreno e a sentir-se mais confortável. Os EUA negoceiam quando os russos deixam. O regime aceita os planos negociados porque se diverte mais assim. Os sírios, oposição, activistas, civis, concordam por não terem opção, por saberem que assim podem, pelo menos por uns dias, sentir o sol na cara, ver crianças cinzentas de passarem a vida escondida das bombas a andar de baloiços, como aqueles improvisados com rockets que vimos em fotografias da semana passada.

Assad decidiu "usar a violência de forma racional" e fez isso logo em 2011, como dizem desde essa altura os que melhor conhecem esta dinastia incendiária (“ou Assad, ou incendiamos tudo" é a divisa, não foi expressão inventada agora). Há três anos, na manhã de dia 21 de Agosto, acordámos com fotografias de crianças sírias deitadas no chão, em fila, mortas sem sangue nem arranhões. Foi o maior ataque químico em 25 anos. Ordenado por Assad com inspectores da ONU num hotel a sete quilómetros? Tratando-se de Assad, porque não? Faz todo o sentido, na lógica do massacre.

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