Um ano depois de Aylan, são cada vez mais os muros para travar refugiados

As mortes no Mediterrâneo aumentaram, apesar de serem menos os que tentam chegar à Europa. Assembleia-geral da ONU arranca com iniciativas que pedem mais coordenação e uma abordagem “mais humana”. Há mais de 65 milhões de refugiados no mundo, uma em cada 113 pessoas.

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A cerca entre as fronteiras da Hungria e da Sérvia Laszlo Balogh/Reuters

Afogou-se no mar Egeu a 2 de Setembro do ano passado e a fotografia do seu pequeno corpo na areia chocou – por um tempo curto pareceu até ter abanado consciências, políticos incluídos. Se fosse vivo, Aylan Kurdi, curdo sírio, teria quatro anos.

Esta segunda-feira começa a Assembleia Geral da ONU, que anualmente recebe os líderes do mundo. Em 2015, Síria e refugiados estiveram no topo da agenda. Desta vez, os debates começam com a Cimeira para Refugiados e Migrantes, organizada a pedido do secretário-geral, Ban Ki-moon, para “unir os países numa abordagem mais humana e coordenada”. Como habitualmente nos encontros a este nível, já existe uma versão negociada do documento final e muitos grupos de direitos humanos consideram que a declaração “mina” os resultados, ao deixar de fora propostas concretas.

“Enfim, as expectativas são moderadas e não são muito optimistas, há grandes divisões entre os estados na interpretação e na vontade de tomar medidas comuns”, diz Teresa Tito de Morais, presidente do Conselho Português para os Refugiados (CPR), que representa o ACNUR (Alto-Comissariado da ONU para os Refugiados) em Portugal e que na terça-feira completa 25 anos. Nesse dia, é Barack Obama que promove novo encontro para convencer os dirigentes a receberem mais pessoas nos seus países.

“As divisões começam na prevenção dos conflitos, porque as Nações Unidas têm esse papel de mediador, devem evitar e prevenir esta grande mobilidade forçada de pessoas”, lembra Teresa Tito de Morais. “E continua a indiferença de muitos estados para o que se passa no mundo.”

Com mais de 65 milhões de refugiados e deslocados no mundo (21,3 milhões são refugiados; 40,8 deslocados internos; 3,2 requerentes de asilo), esta é hoje a realidade de uma em cada 113 pessoas. Na verdade, esta era a realidade no final de 2015, hoje é pior. Se é verdade que chegam agora menos pessoas à Europa – por causa do acordo entre a UE e a Turquia, com os turcos a impedirem a saída de sírios –, certo é que as pessoas não pararam de fugir da morte um pouco por todo o lado.

E mesmo na Europa, não chega assim tão menos gente: As chegadas à Grécia diminuíram muito, mas “da Líbia, por outro lado, está a crescer consideravelmente o número de embarcações que tentam passar pelo Mediterrâneo e chegar a Itália (Lampedusa), mas também a Malta”, diz a presidente do CPR. O pior de tudo é que morre mais gente a tentar do que ao longo de 2015, quando chegaram às costas europeias 1,3 milhões pessoas.

Muito mais mortos

“Ainda há bem pouco tempo, um responsável do ACNUR dizia numa conferência que tem morrido mais gente. Até agora, temos a morte de uma pessoa em 52, o ano passado era uma em 42. As mortes em proporção são muito elevadas e é isso que muitas vezes não se valoriza”, afirma a portuguesa. Até 14 de Setembro, segundo a Organização Mundial das Migrações (OIM), 3212 pessoas tinham-se afogado do Mediterrâneo. Por mar, já tinham chegado 297,093; há um ano eram 469,869.

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Um mural retrata o pequeno Aylan Kurdi Paulo Whitaker/Reuters

Estes números podem impressionar, mas a verdade é que estarão muito aquém da realidade. Uma analista de dados estima que podem morrer 10 mil refugiados em 2016, o maior número já registado. “Este ano já estamos em mais de 4000, mas fora do Mediterrâneo e da Europa a informação é tão pouca que pensamos estar muito subestimada”, diz ao Guardian Julia Black, do centro de análise de dados da ONG Projecto dos Migrantes Desaparecidos.

“Este ano, realisticamente, vamos alcançar outra vez o total de 5000 mortes, mas eu diria que o número será pelo menos o dobro. A dimensão é maior do que tudo o que já vimos”, garante Black, que trabalha com números da OIM, apontando as mortes entre quem tenta alcançar Itália a partir da Líbia, mas também de gente que foge de países na América Latina. Para já, nessa parte do globo, há 400 mortes registadas pela OIM, “mas o número pode facilmente ser o dobro ou o triplo”.

A presidente do CPR lembra o acordo entre os Estados Unidos e a Rússia sobre a Síria, “que, na prática, tem sido muito precário e não está a evitar que as pessoas saiam, pelo contrário”. E os sírios são o maior grupo de refugiados, 4,9 milhões. Os conflitos que mais refugiados provocam são quase os mesmos desde que o CPR foi fundado, em 1991 (Afeganistão, Iraque, Burundi, República Democrática do Congo, Somália, Sudão, Colômbia, Cáucaso e ex-Jugoslávia); a Síria é a grande e triste novidade.

Para além da Síria, Teresa Tito de Morais salienta “conflitos que se vão acendendo ou reacendendo, na Eritreia, Sudão, Iraque… já para não falar na Nigéria, com o Boko Haram, Chade, Iémen”. Todos estes países “estão a exportar refugiados porque de facto as situações que neles se vivem são intoleráveis e as verdadeiras vítimas são, como sempre, os civis apanhados neste terror”, diz.

Muros e sondagens

A Europa, nota, numa conversa em que as palavras “responsabilidade” e “solidariedade” foram as mais repetidas, “também podia e devia estar mais envolvida a todos os níveis, mas sem dúvida na criação de soluções de acolhimento para estas pessoas”. Um dos grande problemas, na Europa e no resto do mundo desenvolvido, é “o comportamento cada vez mais restritivo dos governantes, que adoptam políticas cada vez mais limitativas”, afirma. “Isto porque pensam que vão ganhar votos, que vão poder fechar-se numa redoma e ser indiferentes ao que se passa no mundo.”

Muros para tentar travar a passagem de refugiados são cada vez mais – o último anunciado, há pouco mais de uma semana, vai ser construído em Calais por franceses e britânicos para impedir a saída de pessoas do Norte de França para o Reino Unido. Terá quatro metros de altura e vai custar mais de 2,2 milhões de euros (e juntar-se ao da Hungria, Bulgária, Ceuta e Melila).

Ouvimos habitualmente dizer que os refugiados que ficam nos países vizinhos, todos nações em desenvolvimento, são 80 a 86% do total. Segundo um novo relatório do Banco Mundial, nos países em desenvolvimento estão na verdade 89% dos refugiados e 99% dos deslocados internos. “A Europa acaba por não ser, ainda, o destino de grande parte, diz Teresa Tito de Morais. E isto, apesar de todo o caos que os líderes húngaros ou britânicos dizem temer.

O que parece haver é um desencontro entre o entendimento dos políticos e a opinião pública: de acordo com uma sondagem encomendada pelo International Rescue Committee (e feita pela empresa Ipsos Mori), mais de três quartos dos europeus (em 12 países) percebem que os seus países recebam refugiados e empatizam com eles. “Esta sondagem mostra que os europeus não perderam os seus corações”, diz David Milliband, presidente do IRC. “A crise de refugiados é uma tragédia humana, não tem de ser um desastre político”. Aylan Kurdi abanou mesmo consciências – falhou foi a de alguns políticos. 

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