"Brexit": Theresa May não quer "revelar o jogo demasiado cedo"

Quase três meses depois do referendo à UE, Londres não adiantou sequer um esboço do que pretende nas negociações para o "Brexit". No centro do dilema, um equilíbrio quase impossível entre controlo da imigração e acesso ao mercado único

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“Brexit means Brexit”, o mote de Theresa May tornou-se num lema gasto que nada quer dizer Toby Melville/Reuters

Já ninguém esconde um revirar de olhos quando o Governo britânico repete o mote inventado por Theresa May para tranquilizar os que votaram a favor da saída da União Europeia e fechar a porta a um segundo referendo. Passaram quase três meses, mas pouco mais se sabe das intenções da primeira-ministra britânica para lá da frase gasta “’Brexit’ means ‘Brexit’”. E a indefinição – que deixa nervosos os empresários e furiosos os parceiros europeus – alimenta a suspeita de que, no fundo, Londres não tem ainda o esboço de um plano para lidar com a decisão mais estratégica que o país enfrenta em décadas.

Terminada a acalmia trazida pelas férias, a pressão sobre Londres voltou a aumentar, mas qualquer expectativa de maior clareza depressa caiu por terra. Ouvido no Parlamento, o ministro para o “Brexit” foi tão parco em explicações sobre as primeiras semanas de trabalho do departamento que chefia que, quando confrontado com mais um pedido de clarificação, respondeu: “’Brexit’ significa o Reino Unido deixar a UE e passar a tomar decisões sobre as suas fronteiras, leis e impostos”.

Seguiram-se risadas e críticas vindas de todas as bancadas. Mas David Davis daria ainda mais um passo em falso quando disse ser “improvável” que o Reino Unido venha a desistir de controlar a imigração para manter o acesso ao mercado único europeu – aquele que sempre foi para Londres o principal prémio da sua presença na UE. Pouco depois, a porta-voz de Downing Street veio esclarecer que Davis estava a expressar a sua opinião e “não a posição oficial” do Governo.

A primeira-ministra não tem sido mais esclarecedora. Durante a cimeira do G20, que marcou o arranque da agenda internacional depois das férias, rejeitou a hipótese de, quando o país deixar a UE, introduzir um sistema de imigração por pontos, semelhante ao australiano, dizendo que quer um modelo que permita ao governo ter “algum controlo” sobre quem entra no país. Mas não disse que alternativa propõe e os alarmes dos eurocépticos dispararam perante a possibilidade de May admitir algo menos do que um controlo total das fronteiras – promessa central dos que fizeram campanha pelo “Brexit”.

De regresso a Londres, a líder conservadora esquivou-se aos pedidos para que levantasse finalmente o véu sobre os seus planos, dizendo que não vai “comentar em permanência as negociações” nem “revelar o jogo demasiado cedo” – afirmações que levaram os trabalhistas a acusá-la de não ter nada na mão. Mas numa coisa ela faz finca-pé: só desencadeará o processo formal de separação, previsto no artigo 50 do Tratado de Lisboa, “quando o Governo estiver preparado” para negociar, o que, repete, não acontecerá antes do início de 2017, adiando a saída, na melhor das hipóteses, para 2019.

A incerteza desagrada aos brexiters, que defendem uma saída rápida da UE, mesmo que isso tenha repercussões na economia. Temem que May – que apoiou a permanência sem se empenhar na campanha – acabe por ceder à City, que gera 10% da riqueza do país e quer continuar a vender sem entraves os seus serviços financeiros na Europa.

Mas a demora incomoda mais ainda a UE, sobre quem o “Brexit” deixou a pairar a ameaça de desagregação e quer encontrar o quanto antes uma solução que seja suficientemente dissuasora de outras cisões e amigável o bastante para não prejudicar os seus próprios interesses.

Na ronda pelas capitais antes da cimeira desta sexta-feira em Bratislava – convocada para discutir o futuro da UE pós-“Brexit” e na qual May não participará – o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, foi a Downing Street reafirmar que não haverá negociações, formais ou informais, antes de Londres invocar o artigo 50. No discurso sobre o estado da União, o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, repetiu que o Reino Unido só manterá o acesso ao mercado único se aceitar, como a Noruega, a livre circulação de pessoas. E tanto a Comissão como o Parlamento Europeu escolheram como principais negociadores personalidades muito pouco queridas em Londres: o antigo comissário francês Michel Barnier e o ex-primeiro-ministro belga, Guy Verhofstadt.

May sacode a pressão dizendo que vai trabalhar para conseguir um equilíbrio justo entre a exigência dos eleitores (que querem controlar a imigração) e das empresas (que privilegiam o acesso ao mercado único), dizendo que procurará nas negociações um acordo “feito à medida” do Reino Unido. O que isso significa é ainda uma incerteza, tal como é uma incerteza até que ponto os europeus estão dispostos a ceder na intransigência que agora afirmam.

Gavin Hewitt, especialista em assuntos internacionais da BBC, escreveu que o Governo britânico teria a tarefa facilitada se conseguisse convencer os europeus a manter contactos informais antes de accionar o artigo 50. “Tal como as coisas estão, o Governo terá de declarar a sua mão, pôr o relógio em marcha antes de conseguir perceber a resposta europeia.”

Num artigo para a Foreign Policy, o jornalista Robert Colvile afirma que os meses de quase silêncio serviram a May para se inteirar dos desafios que tem pela frente e afirmar a sua autoridade sobre os eurocépticos que chamou para o Governo. “O dilema que enfrenta é que, a certo ponto, a inactividade estratégica se torna apenas inactividade.” E apesar de estar em alta nas sondagens e a economia ter serenado, as decisões que tem pela frente “vão desagradar a um grande número de eleitores. Talvez seja por isso que esteja tão contente em adiá-las.”

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