Num país de floresta mal gerida, só 23 alunos escolheram engenharia florestal

Primeiro debate sobre o tema "A Floresta Portuguesa em Causa", da UTAD, aflorou problemas na gestão dos territórios do interior do país.

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Só uma pequena parte das Zonas de Intervenção Florestal consegue gerir as áreas que tem a seu cargo Daniel Rocha

Portugal tem pela frente o desafio de gerir melhor um terço do seu território ocupado por florestas mas o país corre o risco de, nos próximos anos, ter poucos quadros qualificados para o fazer. Na primeira fase, o curso de Engenharia florestal da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro atraiu três candidatos, a que se somam os vinte que entraram na mesma licenciatura do Instituto Superior de Agronomia (ISA). “Se não há alunos, como vamos manter a funcionar os centros de investigação?”, questiona o catedrático Rui Cortes, da UTAD, lembrando que outras instituições já deixaram de oferecer esta formação que só não fecha em Vila Real porque a reitoria faz finca-pé no valor do curso para o futuro da região e do país. 

A importância da gestão do território (floresta incluída) para a diminuição do impacto dos incêndios, que em área ardida fazem já de 2016 o quarto pior ano das últimas quatro décadas, esteve bem presente nas múltiplas intervenções do primeiro debate do ciclo “A Floresta Portuguesa em Causa” organizado pelo Departamento de Ciências Florestais e Arquitectura Paisagística da UTAD. A plateia do pequeno auditório do Teatro de Vila Real estava cheia, entre alunos e professores que esta terça-feira ali quiseram ouvir alguns dos mais reconhecidos especialistas no sector procurar, entre os diagnósticos feitos há anos e as lições dos tempos mais recentes, caminhos para essa parte de Portugal que apenas é notícia – queixaram-se – quando arde.

Num país com 35% do território ocupado por floresta, detida esmagadoramente por privados, a invisibilidade do tema fora da “época” dos fogos atinge vários patamares. Um deles é o da formação, assinalou Rui Cortes em declarações ao PÚBLICO após o debate. “A floresta só é assunto pelo seu lado trágico. E isto não atrai os jovens”, admite este docente, preocupado com o futuro do sector. Mas o decréscimo de alunos na engenharia florestal acompanha o despovoamento do interior e a litoralização da população, que se afastou, física e mentalmente, de um mundo rural do qual a floresta era parte integrante.

O presidente do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas, Rogério Rodrigues, considerou essencial voltar a criar nas pessoas a noção do valor das áreas florestais, chamando a atenção quer para o que, economicamente, elas valem e podem vir a valer, quer ainda para o que poderemos perder se continuarmos a desleixar a sua gestão. O especialista em Ecologia e Gestão do Fogo José Miguel Cardoso Pereira considera que o contraste entre o investimento anual no combate aos fogos e a despesa em prevenção provam esse afastamento da sociedade – responsáveis políticos incluídos.

“A prevenção é secundária porque a floresta é secundária. E o combate faz-se para proteger casas, pessoas, infraestruturas”, notou. O docente do ISA não pôs em causa essa prioridade, mas insistiu que a protecção da floresta não pode ser considerada uma tarefa colateral e subalternizada”. Palavras de quem lançou um dos desafios deste debate. Que Portugal reflicta sobre a sua “suposta vocação florestal” e se analise se não será melhor, face às capacidades do país, abdicar de dez a 15% da área ocupada com floresta mal gerida criando zonas tampão que, com outras actividades, possam quebrar as manchas de ocupação contínua. “Não vamos lá com faixas de contenção de 100 ou 150 metros”, alertou.

ZIF devem ser reactivadas

Américo Mendes (docente da Católica e responsável por uma Zona de Intervenção Florestal (ZIF) no Entre Douro e Sousa) voltou a pôr o dedo na forma como os Governos abandonaram o apoio às ZIF, que apesar de serem supostamente responsáveis pela gestão de quase um terço dos 3,3 milhões de hectares de floresta tiveram acesso a financiamento apenas nos três primeiros anos e estão, na prática, paralisadas, salvo raras excepções. Rejeitou por isso algumas críticas ao modelo que, para o representante do colégio da engenharia florestal da Ordem, António Macedo, deve ser valorizado e pode conviver com outras formas de associativismo e organização que garantam escala a um país onde as 10,5 milhões de micro-propriedades existentes sobretudo no Norte e no Centro, com muitos proprietários desinteressados, tornam o panorama ingerível.

O docente da UTAD Paulo Fernandes avisara, logo na primeira intervenção do dia, que o que mudou no país não foi a estrutura fundiária, mas a actividade económica desenvolvida nas florestas portuguesas e no interior, em geral e que, em parte, garantiam um mosaico paisagístico que travava, na década de 50, os grandes incêndios. Por isso, a bióloga Helena Freitas, que espera ver divulgadas ainda este mês, pelo primeiro-ministro, as propostas da Unidade de Missão para o Interior, que coordena, insistiu na necessidade de atrair gente e actividades para estas zonas. Actividades que garantam uma multifuncionalidade do território e que, através da exploração de vários recursos – mel, cogumelos, frutícolas, turismo de natureza, exemplificou – quebrem o ciclo de abandono e sejam uma alternativa por exemplo, ao eucaliptal.

O presidente da Quercus, João Branco, afirmou que só acreditará nas políticas para o sector quando elas vierem acompanhadas de verbas para executar tarefas como a limpeza de matas ou a plantação de folhosas que quebrem os contínuos de eucaliptal e pinhal. “A Lei de Defesa da Floresta Contra Incêndios é óptima mas ninguém a cumpre”, alertou, considerando que os municípios não podem deixar de ser ouvidos sobre o tipo de plantações a realizar na sua área territorial. O dirigente associativo criticou a enfase que tem sido dada ao cadastro da propriedade rústica (que é incipiente), considerando que ele não resolve os verdadeiros problemas desta parte do território. Mas neste ponto, outros intervenientes frisaram que o cadastro é essencial para lidar com o absentismo de uma parte considerável dos proprietários.

O conjunto de soluções apresentado dá-nos um retrato de um país que, a par de um reinvestimento na agricultura deveria ter uma floresta mais variada e melhor gerida – com exploração de outros recursos e aproveitamento de biomassa para biocombustíveis de segunda geração, notou Helena Freitas – a par de zonas de pastagem. Estas, para além de servirem uma pecuária extensiva que tem espaço para se desenvolver, como notava um dos participantes,  garantiriam – como já garantem, onde existem – descontinuidades que ajudam a quebrar o avanço dos fogos. Porque face às características de Portugal, e perante as alterações climáticas, esses, com mais ou menos mão criminosa ou negligência, serão uma realidade cada vez mais presente, alertou Paulo Fernandes: vincando que o mais importante é evitar que os incêndios atinjam grandes dimensões, como por várias vezes aconteceu este ano.  

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