A primeira cimeira que pode ser a última. Ou não

O que leva os líderes dos países do Sul a reunirem-se em Atenas para debater o futuro da Europa? Talvez o simples facto de ninguém saber que Europa emergirá da crise. A grande novidade é a França. Rajoy acabou por recuar.

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Pode ser a primeira mas também a última. Há meia dúzia de meses ainda parecia impossível. É uma novidade em relação às estratégias europeias da maioria dos países que estarão em Atenas. A iniciativa partiu de Alexis Tsipras, que se ofereceu para anfitrião, depois de ter participado como observador nas reuniões dos líderes socialistas europeus no Palácio do Eliseu para articularem ideias sobre o futuro da Europa. O primeiro-ministro grego quer mostrar que a Grécia, ainda sob resgate, pode contar com amigos importantes, depois de ter sido tratada como “pestífera”. O momento é oportuno. A troika inicia uma nova vistoria às contas e às reformas de Atenas e já adiantou que não está satisfeita. Quanto aos outros protagonistas do encontro, a sua lógica só é perceptível à luz desta longa crise existencial que pôs em causa muitas das certezas anteriores sobre a integração europeia.

Entretanto, é a própria Europa que está, também ela, a mudar. A Grécia já saiu dos cabeçalhos, dando lugar à crise dos refugiados, ao "Brexit", ao terrorismo e, também, à relativa estagnação da economia europeia, que ainda não se libertou do risco de deflação, obrigando o BCE a manter as máquinas a funcionar. As coisas mudaram também entre os países do Sul e a sua forma de olharem uns para os outros. Basta recuar alguns anos para verificar que a solidariedade entre eles era pura e simplesmente uma miragem. Madrid tratou de cancelar as habituais cimeiras luso-espanholas, porque não queria confundir-se na fotografia com um país “resgatado” (incluindo no tempo do socialista Rodriguez Zapatero). Portugal passou os anos do resgate a distanciar-se da Grécia publicamente (“Portugal não é a Grécia”) e a comportar-se nos Conselhos Europeus como um dos mais duros críticos dos incumprimentos de Atenas. A Itália, numa sucessão de governos politicamente instáveis, teve de esperar pela entrada em cena de Matteo Renzi para iniciar um caminho reformista e, ao mesmo tempo, tentado reocupar o seu velho lugar de “grande país fundador”. A própria Grécia já não corre o risco de ver o seu Governo “despachado” por uma ordem de Merkel, como aconteceu com o governo de George Papandreau em 2012. A Irlanda e Portugal tiveram “saídas limpas” em 2014, mesmo que o Eurogrupo mantenha o chicote na mão para obviar a qualquer desvio.

Mas a clivagem Norte-Sul que se acentuou durante a crise também deixou marcas profundas, feitas de preconceitos e de desconfianças, que hoje tornam mais fácil um entendimento como o de Atenas.

Merkel à procura de um consenso

Nos últimos dias, a chanceler tem-se multiplicado em encontros com os seus parceiros europeus para avaliar o que pode ou não pode ser feito para evitar a desagregação europeia. A própria Merkel também mudou muito. Foi obrigada a fazer um curso acelerado sobre os custos da liderança nos últimos anos. A crise ucraniana alterou a percepção de Berlim sobre a segurança europeia. Em 2012, a chanceler dizia que não ia pagar as “aventuras militares” da França (no Mali). Participa hoje militarmente na coligação que combate o Estados Islâmico. A crise dos refugiados, que continua à espera de soluções comuns mais eficazes, mudou o centro de gravidade das suas preocupações. O crescimento das forças nacionalistas e populistas (agora também na Alemanha, transformando em realidade o seu maior pesadelo) começa a ser um poderoso factor de desagregação que as lideranças europeias não podem ignorar. Finalmente, o "Brexit" fez soar todos os alarmes.

A chanceler ouviu quase toda a gente antes da cimeira de Bratislava, no dia 16, sobre o futuro da Europa. Encontrou-se com Renzi e Hollande (o novo grupo dos “três grandes” que irrita particularmente Madrid). Reuniu-se com os países de Visegrado em Varsóvia, tomando consciência da perigosa deriva nacionalista e antieuropeia em que se envolveram. Budapeste e Varsóvia, com dois governos nacionalistas, propõem-se "revolucionar" a Europa. Recebeu os Nórdicos em Berlim. Janta com António Costa (e mais os líderes da Lituânia, Letónia, Malta e Chipre) no próximo domingo (uma companhia na qual é possível, talvez, ler algum desagrado alemão com o Governo português). É neste quadro volátil que podemos olhar para a cimeira de Atenas. O que tem de novo e o que representa para os seus protagonistas.

Inflexão francesa?

A França é, certamente, a grande novidade. François Hollande entrou em modo eleitoral que passa por um distanciamento em relação a Berlim, afastando-se da regra de ouro da política europeia da França: manter a liderança franco-alemã (ou a sua ilusão) num quadro em que o desequilíbrio de poder é cada vez maior. Sem criticar abertamente a chanceler, Paris multiplicou-se em sinais de que o “unilateralismo” de Merkel em relação aos refugiados (“Vamos conseguir”) ignorou a opinião dos vizinhos. Apadrinhou algumas iniciativas comuns com o SPD (parceiro júnior da grande coligação alemã), destinadas a minar a liderança da chanceler (as eleições alemãs também se aproximam). A última foi a simultaneidade do anúncio da “morte” do TTIP entre o vice-chanceler Sigmar Gabriel e o próprio Presidente francês. A novidade está em que a França foi sempre o país charneira da construção europeia, a ponte entre o Norte e o Sul (é, simultaneamente, Norte e Sul) e o seu pivô político. Esta viragem para Sul representa uma mudança que pode perdurar ou não.

Escreve o site do Stratfor, num texto sobre “os limites de uma aliança da Europa do Sul”, que o "Brexit" levou os Estados-membros "a procurar soluções regionais para problemas continentais, uma abordagem que tornará ainda mais difícil um consenso sobre o futuro”. O site debruça-se sobretudo sobre ocaso francês. Por causa do seu duplo estatuto de “país Mediterrânico e do Norte”, a França “corre o risco de cair na armadilha de um conflito Norte-Sul, aumentando a tensão entre Paris e Berlim”. Lembra que a economia às vezes não encaixa na geopolítica. Paris pode defender uma estratégia mais expansionista para a zona euro, juntando-se ao Sul, “mas não pode abdicar do seu papel central na geopolítica europeia”. E avisa ainda: “Usar os países do Sul para torcer o braço a Berlim pode alimentar as facções alemãs mais isolacionistas, que defendem uma zona euro apenas em volta da Alemanha ou o “cenário dos dois euros” (apenas tratado nas academias): um forte para a Alemanha e o Norte; outro fraco para os países do Sul, que seria o toque de finados da integração europeia. Neste quadro de mudança, o encontro de Atenas pode significar alguma coisa mas também absolutamente nada.

Rajoy e as vantagens do não governo

A segunda novidade chegou a ser a participação de Mariano Rajoy, só possível num quadro eleitoral a todos os títulos excepcional. Rajoy fez saber à última hora que vai fazer-se representar por um secretário de Estado, demarcando-se da reunião. A Espanha não tem governo há quase um ano e arrisca-se a realizar terceiras eleições em Dezembro. O líder do PP safou-se das sanções (com Portugal) e espera que Berlim tenha paciência quanto ao cumprimento do défice. Hesitou entre ir e não ir porque está em modo eleitoral e porque não quer deixar a França e a Itália a liderarem um bloco de que faz parte. Uma pequena notícia no El País de segunda-feira, com um título sugestivo –  “Porque se cresce mais sem governo” –, assinada pelo colunista Joaquim Estefania, lembrava que, no mesmo dia em que falhava a segunda investidura de Rajoy nas Cortes, foram divulgados os números da evolução do défice nos primeiros sete meses, revelando um aumento de 20% em relação ao mesmo período do ano passado. Estefania admite que pode estar aqui parte da explicação para o crescimento da economia espanhola. “Espanha é o país do euro que mais cresce e, a seguir à Grécia, o que tem o défice maior”. Com o impasse político, o Governo vai esperando mais compreensão de Bruxelas e de Berlim.

Renzi dispara em todas as direcções

Matteo Renzi também não tem a vida facilitada, pelo menos enquanto não conseguir tirar a economia da estagnação prolongada em que tem vivido. Joga o seu futuro num referendo em Outubro sobre a reforma constitucional que aprovou no Parlamento e que visa acabar com a lentidão de um sistema decisório incompatível com qualquer reforma. As suas iniciativas europeias multiplicam-se sem se vislumbrar um rumo específico, a não ser encontrar espaço para flexibilizar as metas macroeconómicas e dinamizar o consumo. Preserva a relação com Berlim, mesmo criticando duramente as políticas de austeridade. Pode apresentar o seu comportamento exemplar em matéria de refugiados. Já disparou noutros sentidos como, por exemplo, num regresso aos “fundadores”, que é hoje praticamente impossível por causa do euro. Joga com o facto de a alternativa ao seu Governo estar nas mãos do Movimento Cinco Estrelas, uma amálgama de populismo e antieuropeísmo, que se soma ao nacionalismo da Liga Norte.

Costa rompe com a tradição

Finalmente, que razões levaram António Costa a alterar a tradicional orientação europeia de Lisboa de não privilegiar grupos regionais, mas antes manter uma relação forte com o centro político? Foi esta, aliás, a razão pela qual o euro foi visto como um passo fundamental para combater a periferia geográfica e económica do país. Uma das razões é comum aos seus parceiros. Tudo mudou na Europa, outros grupos têm-se constituído para impor a “austeridade” às economias do Sul, a fractura económica e social entre o Norte e o Sul é, do seu ponto de vista, o maior problema que a Europa enfrenta e aquele que mais a corrói. Sem hostilizar Berlim (apoia a visão de Merkel sobre os refugiados), reaproximou-se de Paris. Acresce que o Sul que vai a Atenas é constituído por países genuinamente pró-europeus, que querem continuar a sê-lo mas que precisam de argumentos nesse sentido, que não sejam apenas as contas públicas.

Com a baixa de Rajoy e a desordem com que a Europa enfrenta a sua prova de vida, a reunião de Atenas é mais uma para evitar a desagregação europeia. Espera-se que não tenha o efeito contrário.

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