"Preciso de sair deste inferno", dizem crianças refugiadas detidas na Grécia

Relatório da Human Rights Watch alerta para os problemas da detenção de menores não-acompanhados. "Sinto-me como se tivesse assassinado alguém", lamenta um adolescente.

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Crianças refugiadas no norte da Grécia. A HRW pede que à Grécia para não deter os menores não acompanhados BULENT KILIC/AFP

Fugindo de bombas, ataques diários ou perseguições, atravessando país após país sem saber falar a língua em nenhum lado, longe da família que pode estar para trás ou ter morrido na viagem perigosa, muitos menores acabam por chegar finalmente à Europa e... ser presos. Não durante uma noite mas, muitas vezes, por mais de um mês, diz a Human Rights Watch.

Muitos não percebem por que estão ali, em celas sem colchões, com ratos ou pulgas, sem comida suficiente ou, pior, com celas em que estão também adultos. “Sinto-me como se tivesse assassinado alguém”, disse Mukhtar G., um adolescente de 17 anos detido num centro na Grécia, citado pela organização de defesa dos direitos humanos no seu relatório Porque não me deixam sair daqui?: crianças não acompanhadas detidas na Grécia, apresentado esta sexta-feira.

A Human Rights Watch detalha as condições das crianças na Grécia, um dos principais pontos de chegada de refugiados que atravessam o Mar Egeu vindos da Turquia em viagens perigosas às mãos de traficantes, pouco depois de a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) ter alertado para o grande aumento de crianças refugiadas em todo o mundo: há quase 50 milhões de crianças deslocadas, das quais mais de metade, 28 milhões, foram levadas a sair por causa de conflitos.

Entre 2005 e 2015, o número de crianças refugiadas a cargo do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) passou de quatro milhões para mais de oito milhões, um aumento para o qual contribuíram sobretudo os últimos cinco anos, diz a Unicef no seu relatório Desenraizadas: A crescente crise de crianças refugiadas e migrantes. Quase metade, 45%, da população de crianças refugiadas vem de apenas dois países: Afeganistão e Síria.

Nos últimos dois anos, o ponto de entrada na Europa de muitas destas crianças foi a Grécia. O país, que enfrentou em 2015 uma chegada de refugiados sem precedentes que se juntou à já difícil crise económica, não tem centros suficientes para acolher estes menores que estão sozinhos. Assim, acaba por os deter.

Enquanto a medida é apresentada como servindo o próprio interesse das crianças e menores e sendo curta e muito ocasional, a autora do relatório da HRW, Rebecca Riddell, sublinha que o tempo médio de detenção são 40 dias e que estar fechado numa cela apinhada e suja é a última coisa de que um menor em fuga da guerra necessita.

Sobretudo, porque não faz ideia do que lhe está a acontecer. Alguns dos menores que foram entrevistados pela HRW já tinham sido presos noutros locais ao longo da viagem, mas para muitos a chegada à Europa marca a primeira detenção.

E em nenhum caso ouvido pela organização houve possibilidade de falar com a polícia através de um intérprete. Com sorte, algum dos menores falava um pouco de inglês e algum polícia também, mas é raro acontecer, e mesmo isso não permite uma comunicação livre de mal entendidos, nota Ridell ao PÚBLICO, por telefone. “A falta de informação é muito perturbadora para as crianças”, diz. “Elas não percebem aspectos básicos da sua detenção: porque estão presas, para onde vão ser levadas, quando poderão esperar sair.” Muitas vezes estão detidas junto com adultos. “Não me consigo sentir seguro, porque outras pessoas estão a drogar-se”, contou Nawaz, 17 anos. “Há lutas, e nessas alturas não consigo dormir.”

“Juro por Deus, durmo ao lado de ratos”, contou um rapaz argelino de 15 anos. “Sinto-me sozinho aqui, longe da minha família, dos meus amigos… Preciso de sair deste inferno”, disse um afegão de 16 anos.

“Já não conto os dias”, desabafou um curdo de 16 anos que fugiu de uma área controlada por radicais islâmicos e foi levado de um centro de detenção da guarda costeira para um da polícia. Outro problema é que a muitos menores são retirados os telefones, a sua ligação à família que está noutro país. O isolamento aumenta. “A minha família nem sabia onde eu estava”, disse outro entrevistado.

Os próprios polícias não gostam desta situação. “Além de polícias somos pais”, disse um responsável policial em Igoumenitsa, Sul da Grécia. “Claro que concordamos que não devíamos ser nós a lidar com as crianças, mas para já é a melhor opção”, defendeu.

A HRW discorda e embora reconheça esforços das autoridades gregas, Rebecca Riddell sublinha que “a detenção não justificada de crianças é um problema crónico na Grécia – mesmo tendo em conta a escala das novas chegadas e a falta de acção da União Europeia que dificultou muito o problema, ele já existia”. Por isso, “apesar destes desafios e das dificuldades, a Grécia tem obrigação de cuidar destes menores”, defende.

Só nos primeiros sete meses de 2016, o país registou mais de 3300 crianças não acompanhadas, e nos primeiros seis deteve 161, nota a HRW.

No quadro global, as crianças representam cerca de metade do contingente global de refugiados, apesar de constituírem apenas um terço da população mundial, nota a Unicef. “O mundo ouve histórias de crianças refugiadas, uma de cada vez, e o mundo consegue dar apoio a essa criança, mas quando falamos de milhões isso causa um horror incrível e acentua a necessidade em lidar com este crescente problema”, afirmou a autora do relatório da agência para a infância da ONU, Emily Garin.

As crianças enfrentam perigos especiais. Em 2014 e 2015 a Europol alertava para o desaparecimento de dez mil crianças não acompanhadas na Europa, provavelmente às mãos de redes de exploração sexual ou de trabalho forçado.

Na Alemanha, a Associação Federal para Menores Refugiados Não-Acompanhados estima que tenham desaparecido entre 15 a 25% dos entre 35 mil e 40 mil menores sozinhos que chegaram ao país em 2015. No país, o caso de um menor desaparecido causou comoção: Mohammed, um menino bósnio de quatro anos, que estava com a família num centro de registo de Berlim, foi levado por um estranho que acabaria por matá-lo. O caso só terminou um mês depois com a prisão e confissão do homicida, condenado a prisão perpétua.  

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