Clinton, Trump e nós

As eleições presidenciais norte-americanas, por uma vez, estão a ser marcadas por um debate sobre a política externa onde se confrontam duas linhas divergentes sobre as responsabilidades internacionais dos Estados Unidos.

Esse debate existe, desde logo, porque o Presidente Barack Obama não conseguiu consolidar um consenso bipartidário sobre as suas políticas, cujos resultados incluem a emergência de dois arcos de crise nas linhas de demarcação entre a Rússia e a Europa Ocidental e entre a China e a Ásia marítima. Por outro lado, entrou em força no mercado eleitoral a nova geração dos millennials, formada no pós-Guerra Fria pelas experiências do “11 de Setembro” e da débâcle iraquiana, que têm uma nova visão, menos heróica e menos intervencionista, sobre a posição internacional dos Estados Unidos. Finalmente, o espectro populista que paira sobre as democracias traduziu-se na eleição americana tanto na profunda divisão interna dos dois partidos tradicionais, como numa polarização radical na competição entre os seus candidatos oficiais, Hillary Clinton e Donald Trump.

Não há memória de dois candidatos tão distantes. Clinton é não só a primeira mulher candidata à eleição presidencial, como um candidato muito bem preparado: a antiga secretária de Estado representa, como ninguém, a elite política norte-americana. Trump, um milionário independente sem experiência diplomática, é a sua némesis: impos-se ao Partido Republicano e quer representar as classes populares contra as elites cosmopolitas. A divergência entre as duas candidaturas é patente nas suas concepções de política externa, que opõem o internacionalismo ao nacionalismo, a globalização ao proteccionismo, o multilateralismo ao unilateralismo, as alianças ao isolacionismo, a ordem à força e o primado da política externa ao da política interna.

Clinton defende uma estratégia de extensão do poder norte-americano e a demonstração da preponderância dos Estados Unidos, essenciais à continuidade da “hegemonia liberal”. O “sistema americano” assenta na defesa colectiva da ordem internacional cujo centro é formado pela aliança das democracias, cuja credibilidade resulta da capacidade de intervenção estratégica dos Estados Unidos e dos seus aliados e cuja capacidade de integração depende do reconhecimento do modelo multilateral e da dinâmica de globalização. Nesse sentido, os Estados Unidos assumem o primado da política externa, indispensável para consolidar a sua posição como garantes da estabilidade internacional.

Trump adoptou a palavra de ordem do partido isolacionista que tentou manter os Estados Unidos à margem da guerra contra a Alemanha de Hitler: “America First”. O seu programa nacionalista defende uma retracção do poder norte-americano e uma mudança na ordem multilateral da globalização, que força os Estados Unidos a sucessivas intervenções militares externas, ao mesmo tempo que expõe a economia norte-americana à penetração estrangeira. Nesse sentido, está preparado para pôr em causa as alianças externas dos Estados Unidos, incluindo a NATO, que considera excessivamente caras e limitativas da soberania norte-americana, bem como a Área de Comércio Livre da América da Norte (NAFTA) e a Parceria do Pacifico (TPP). Em contrapartida, defende acordos com a Rússia e com a China e, se não for possível normalizar as relações com as potências revisionistas, tem como alternativa uma estratégia proteccionista. O “primado da América” proclamado pelos nacionalistas defende o primado da política interna sobre a politica externa e prejudica as condições para consolidar o primado internacional dos Estados Unidos.

A polarização do debate sobre a política externa entre uma linha internacionalista e uma linha nacionalista - tendencialmente isolacionista, na medida em que se opõe às alianças extermas dos Estados Unidos - não tem precedentes desde a II Guerra Mundial.

Naturalmente, nem a eleição de Clinton significa necessariamente uma estratégia mais afirmativa dos Estados Unidos, nem a eleição de Trump tem como consequência linear o desmoronamento da ordem liberal norte-americana: os factos, sobretudo as crises, costumam ser mais fortes do que os programas de candidatura na definição das políticas externas dos Estados. Mas o poder excepcional dos Estados Unidos implica uma liberdade correspondente na definição das suas estratégias internacionais: a unipolaridade é errática e instável.

A combinação entre a eleição de um candidato populista, sem autoridade e sem experiência, e o regresso de uma estratégia nacionalista obsoleta justifica a ansiedade expressa no anúncio da uma “tentação isolacionista”, cujos efeitos seriam piores do que a “tentação imperial” do último Presidente republicano. A tentação de Bush forçou a convergência entre Blair, Chirac e Schroeder, que se traduziu no Tratado Constitucional da União Europeia e a tentação de Trump exigiria no mínimo outro tanto da troika europeia que sair do "Brexit" e das eleições francesas e alemãs de 2017.

 Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-UNL)

 

 

 

 

 

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