Um PREC cultural no fim do cavaquismo

Em 1994, quando foi divulgada a descoberta da arte paleolítica do Côa, poucos acreditavam que um punhado de arqueólogos e uns milhares de estudantes liceais com um slogan bem achado fossem capazes, mesmo com a ajuda dos media, de travar uma barragem. Mas foram.

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“Ter feito parte daquele movimento, ter cantado As gravuras não sabem nadar! para uma avenida cheia de gente, foi uma coisa única, irrepetível”, diz Dalila Correia, arqueóloga do Museu do Côa, lembrando esse ano de 1995, quando os estudantes da escola secundária de Foz Côa, apoiados pelo então presidente do conselho directivo, José Ribeiro, puseram em marcha uma campanha que, com a ajuda dos arqueólogos e a indisfarçada cumplicidade dos media, iria conseguir o impossível: travar uma barragem em plena construção.

“Tenho muito orgulho no que fizemos, foi a primeira vez após o 25 de Abril que um grande movimento estudantil saiu em defesa de algo que não tinha a ver directamente com a escola”, salienta Dalila, que espera agora impacientemente que a sua filha pequena tenha idade para lhe poder falar desses dias que literalmente mudaram a sua vida. Quando a polémica das gravuras rebentou, estava no 12.º ano e tencionava seguir enfermagem. Mas convenceram-na a candidatar-se ao primeiro curso de guias do parque e acabou a estudar arqueologia.

“Quando saíamos daqui e dizíamos que éramos de Foz Côa, as pessoas perguntavam-nos onde é que isto ficava”, conta, “e de repente esta terra era o centro das atenções, os telejornais abriam diariamente com o Côa, a imprensa nacional e internacional não saía daqui, e claro que víamos tudo isto com um grande orgulho”. Um entusiasmo que a geração mais velha estava longe de partilhar: “Numa terra do interior onde não se via uma estrada nova há imenso tempo, o símbolo do desenvolvimento era o betão, e a barragem tinha valorizado muito os terrenos e as rendas das casas, havia empresas e restaurantes que dependiam dela”, explica Dalila. “Houve gente que deixou de se falar desde essa altura”. 

Filha de um casal de Mogadouro que antes de ela nascer já se tinha mudado para Foz Côa, Carla Pinto, hoje técnica de vídeo no Museu de Serralves, frequentava a Escola Superior Artística do Porto quando a descoberta da arte paleolítica foi divulgada. Regressou à terra e encontrou um ambiente efervescente. “A escola já se tinha mobilizado para a luta, Foz Côa estava sitiada pelos meios de informação, vinham músicos, como o Jorge Palma, faziam-se cartazes e faixas, ninguém dormia”, descreve Carla, que também acabou por tirar o curso de guia e ficou um ano e meio a mostrar as gravuras aos visitantes. Recorda em especial o dia em que “milhares de pessoas fizeram um cordão humano na zona da barragem, a gritar, por cima do barulho das retroescavadoras, as gravuras não sabem nadar, yo!”, slogan que Nuno Saldanha, presidente da então recém-criada associação de estudantes da escola de Foz Côa, foi buscar a um rap dos Black Company.

Ainda antes dessas férias da Páscoa de 1995, quando dois ou três mil estudantes de todo o país assentaram arraiais na escola Tenente-Coronel Adão Carrapatoso, num acampamento autorizado por José Ribeiro à revelia da proibição expressa da então ministra da educação Manuela Ferreira Leite, já a luta estudantil tivera um primeiro momento decisivo no final de Fevereiro, quando Mário Soares foi a Foz Côa e recebeu dos alunos um documento com cerca de cem mil assinaturas, enquanto o subsecretário de Estado da Cultura, Manuel Frexes, que comparara as gravuras a desenhos de crianças, era presenteado, lembra Dalila, “com uns óculos, para ver melhor, e uma pedra com desenhos feitos por miúdos, para perceber a diferença”.

O apoio do então Presidente da República dará à campanha contra a submersão das gravuras o respaldo institucional que lhe faltava. Até então, e apesar da movimentação dos arqueólogos, do empenho de alguns deputados socialistas, como Eurico Figueiredo, da pressão dos media e das manifestações dos estudantes, poucos acreditavam que fosse de facto possível parar a barragem.

Mas quando Soares se encontra com os estudantes, o chamado processo do Côa já levava alguns meses. Ou mesmo anos, dependendo de onde se começa a contar a história.

Arte ao ar livre

Um início possível é o da celebração, em 1991, do acordo entre a EDP e o Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico, em virtude do qual o IPPAR fará o acompanhamento arqueológico da obra da barragem, cabendo à empresa custear esse trabalho. A equipa é liderada pelo arqueólogo Nelson Rebanda, a quem se deve a descoberta das primeiras gravuras rupestres. Em que exacto momento as descobriu, continua a ser motivo de controvérsia, mas em Novembro de 1994 mostra aos arqueólogos Mila Simões de Abreu e António Martinho Baptista os decalques que fizera dessas gravuras, e ambos ficam convencidos de que se trata de arte paleolítica.

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A descoberta das primeiras gravuras rupestres deve-se à equipa liderada pelo arqueólogo Nelson Rebanda manuel roberto

Mila Simões de Abreu avisa de imediato personalidades e instituições nacionais e internacionais dos meios da arqueologia, e o IPPAR, que já tinha conhecimento do achado pelos relatórios de Rebanda, vê-se obrigado a emitir um cauteloso comunicado, que o Correio da Manhã assinala numa breve notícia publicada no dia 20, na qual se refere a descoberta de gravuras rupestres “no Douro”. Mas o artigo que verdadeiramente lança a polémica, e que integra hoje a exposição permanente do Museu do Côa, é o que surge no PÚBLICO do dia seguinte, 21 de Novembro, assinado por Manuel Carvalho: Barragem de Foz Côa ameaça achado arqueológico.

Desse momento até à criação do Parque Arqueológico, em Agosto de 1996, Foz Côa foi o palco de uma espécie de PREC cultural. Com os arqueólogos a defender nas televisões a importância do achado e a imprensa internacional a levar a polémica aos quatro cantos do mundo, o IPPAR encarrega uma equipa internacional de estudar as gravuras. Lidera-a o responsável do Comité de Arte Rupestre na UNESCO, Jean Clottes, que confirma que Foz Côa é o maior sítio de arte rupestre paleolítica ao ar livre de uma Europa onde então quase só se conhecia a arte paleolítica das grutas. Mesmo assim, Clottes defende a submersão das gravuras, para evitar que estas sejam vandalizadas, o que leva o arqueólogo Cláudio Torres a acusá-lo de comparar Portugal ao Burundi.

Em Janeiro de 1995, o IPPAR pede a suspensão da obra, mas a EDP prossegue os trabalhos, enquanto contrata uma série de especialistas internacionais para tentar contestar a antiguidade das gravuras e vai propondo formas – todas elas rejeitadas pelos arqueólogos – de as compatibilizar com a barragem: removê-las, criar réplicas e fazer um parque temático, até mesmo criar um submergível para vistas subaquáticas. 

Enquanto se vai tornando cada vez mais clara a importância mundial da arte rupestre do Côa, começam também a aparecer várias vozes a menorizar a relevância da barragem para a produção de energia, incluindo a de um ex-secretário de Estado da Energia, e então deputado do PSD, Nuno Ribeiro da Silva, que revela que o projecto fora rejeitado mais do que uma vez pela tutela, e não hesita em afirmar à imprensa que os responsáveis da EDP “mentem descaradamente”.

Com as eleições legislativas a aproximar-se, o governo de Cavaco evita tomar posições definitivas, mas vai deixando que a obra prossiga. No PS, o candidato a primeiro-ministro, António Guterres, assume ainda na campanha a necessidade de preservar as gravuras, e logo que o seu Governo toma posse, com Manuel Maria Carrilho como ministro da Cultura, ordena a suspensão da barragem. E em 1996 cria o Parque Arqueológico do Vale do Côa (PAVC) e lança ao mesmo tempo o Programa de Desenvolvimento Integrado do Vale do Côa (Procôa), o primeiro de vários instrumentos concebidos para colocar o património, com o auxílio de fundos europeus, ao serviço do desenvolvimento da região.

Depois de uma primeira e frustrada tentativa de se criar um museu no próprio rasgão feito pela barragem, que chegou a ser projectado pelo primeiro director do PAVC, o arquitecto Fernando Maia Pinto, foi só em 2010, no final do mandato da sua sucessora, a arqueóloga Alexandra Cerveira Lima, que o Museu do Côa, hoje dirigido por António Martinho Baptista, abriu finalmente as portas. 

Paulo Pimenta
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