Protestos e repressão violenta abalam a Etiópia, o farol da estabilidade no Corno de África

Amnistia Internacional diz que mais de cem pessoas foram mortas nos protestos do último fim-de-semana. Revolta que nasceu em Novembro é a maior convulsão que o país enfrenta em 25 anos.

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Manifestantes oromo na capital da Etiópia, em protesto contra a desigualdade e a discriminação a 6 de Agosto REUTERS/Tiksa Negeri

A repressão foi violenta – a polícia disparou balas reais contra os que se manifestavam, dezenas de pessoas foram mortas e muitas outras detidas; depois dos protestos a Internet e as comunicações por telefone foram cortadas. Mas não foi suficiente para tapar por completo dos olhos do mundo aqueles que já são considerados os maiores protestos em décadas na Etiópia, um país que é aliado militar dos ocidentais na luta contra os extremistas islâmicos na vizinha Somália e tido como um dos mais estáveis da inflamável região do Corno de África. Mas que é também um dos mais repressivos em todo o mundo.

Não há lugar para a dissensão na Etiópia. Não há hoje, como não havia nos tempos do imperador Hailé Selassié e menos ainda durante o regime marxista (1974-91) imposto pela junta militar que o depôs – o seu líder, Mengistu Hailé Mariam, foi condenado à pena capital in absentia, em 2008, pela morte de milhares de pessoas durante purgas que ficariam conhecidas como Terror Vermelho (1977-78). Continua a viver, exilado e em segurança, no Zimbabwe.

Mas a Etiópia da actualidade é também um modelo de crescimento económico – o PIB aumentou 10% na última década e em 2015 registou a maior taxa de crescimento em todo o mundo (8,7%). Para trás ficaram as fomes endémicas que, no início da década de 1980, mataram centenas de milhares de pessoas e chocaram a consciência mundial.

No entanto, e apesar de melhorias nos índices de desenvolvimento humano que mereceram o elogio internacional, continua a ser, como boa parte dos vizinhos, uma das nações mais pobres do mundo. E está muito distante do multipartidarismo inscrito na Constituição que o ex-primeiro-ministro Meles Zenawi fez aprovar em 1994, três anos depois de as forças que encabeçava terem tomado Adis Abeba. Nas legislativas de 2015, a Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (FDRPE), liderada desde a morte de Meles, em 2012, pelo seu antigo vice Hailemariam Desalegn, arrebatou a totalidade dos assentos parlamentares. Um resultado que se explica pelo assédio constante – com prisões e denúncias de tortura – de políticos da oposição, activistas e jornalistas, o bastante para este ano o país ocupar o 142º lugar na lista de liberdade de imprensa compilada pelos Repórteres Sem Fronteiras, recorda a AFP.

Só que a revolta explodiu onde o Governo não esperava. Em Novembro, e de novo em Dezembro, centenas de pessoas saíram à rua em protesto contra um plano para a expansão da capital, que previa a expropriação de terras e aldeias habitadas pela etnia oromo, a maior de um país de quase cem milhões de pessoas onde coabitam dezenas de grupos étnicos.

“Separatistas étnicos”

O Governo respondeu como responde sempre: pela força, matando, prendendo, ameaçando. Oss grupos de direitos humanos calculam que 140 pessoas tenham sido mortas (a Human Rights Watch fala mesmo em 400, muitos deles menores de idade) na repressão dos protestos em Oromia, a província que rodeia Adis Abeba e se estende para Sul e Oeste, até às fonteiras do Quénia e Sudão do Sul. As autoridades dizem que o número de mortos foi muito inferior, atribuindo-os a confrontos entre as forças de segurança e “separatistas étnicos”.

O plano de expansão acabou por ser abandonado em Janeiro, mas não foi suficiente para calar a revolta entre os oromo, sobretudo os mais jovens, que continuaram a organizar protestos para exigir a libertação dos que foram presos ao abrigo das duras leis antiterrorismo e denunciar a discriminação de que dizem estar a ser alvo. Uma mobilização que acabou por contagiar a segunda maior etnia do país, os amhara, que têm velhas rivalidades com oromo, mas com quem partilham agora o mesmo sentimento de discriminação – juntos, os dois grupos representam mais de 60% da população, mas são os tigré (menos de 10% dos etíopes) quem domina o Governo e as forças de segurança.

O Estado “é controlado por uma minoria étnica que impõe a sua vontade à maioria”, explicou à AFP Getachew Metaferia, professor de Ciência Política nos EUA e especialista em História etíope. Foi precisamente por causa de um desses agravos – a recusa do Governo em discutir a devolução de uma faixa de território incluída há duas décadas na vizinha região de Tigré – que desencadeou a revolta na província de Ahmara, em Julho.

“Nunca em toda a minha vida, como manifestante ou organizador de protestos, vi manifestações em vários pontos do país num único dia”, contou à revista online Quartz o jornalista etíope Mohamed Ademo, que vive exilado nos EUA, a propósito das manifestações do último fim-de-semana. A feroz censura impede uma visão clara sobre os acontecimentos, mas a BBC conta que nos dias anteriores activistas nas duas regiões trocaram mensagens de solidariedade, o que terá sido suficiente para que, na sexta-feira, Hailemariam proibisse todas as manifestações e ordenasse o bloqueio das redes sociais.  

Mas no sábado, dia 6, num desafio inédito ao regime, cerca de 500 jovens oromo juntaram-se numa das praças centrais da capital, antes de serem violentamente reprimidos pela polícia – a Reuters, que captou as únicas fotos existentes dos protestos, conta que dezenas foram detidos e levados em caixas de carrinha aberta. As manifestações espalharam-se por Oromia e um dirigente da oposição contou à agência pelo menos 33 pessoas morreram numa dezena de cidades às mãos das forças de segurança. A violência terá sido ainda maior na cidade Bahir Dar, na província de Ahmara, com residentes a garantirem que os soldados abriram fogo directamente sobre os manifestantes. A Amnistia Internacional denunciou que mais de uma centena de manifestantes foram mortos nas duas regiões, equiparando a actuação das forças de segurança a “execuções extrajudiciais”. 

O correspondente da emissora pública norte-americana NPR na região, Gregory Warner, contou que as comunicações com as duas províncias foram cortadas, o que dificulta a confirmação das informações, mas adianta que alguns activistas contornaram o bloqueio às redes sociais e, antes de o acesso à Internet ter sido cortado, divulgaram vídeos de alguns protestos, onde são visíveis pessoas feridas ou a fugir dos disparos.

Um aliado valioso

O alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Ra'ad Al Hussein, exigiu nesta quarta-feira a Adis Abeba que autorize o envio de observadores internacionais, lamentando que nada tenha sido feito para investigar as denúncias existentes desde Janeiro. Também a embaixada americana em Adis Abeba lamentou as mortes e pediu respeito pelo direito de manifestação. Mas não foi mais longe na repreensão a um Governo para o qual canaliza todos os anos milhões de dólares, sobretudo em ajuda militar, e que é um dos seus aliados mais valiosos no combate às milícias Al-Shabbab – foi o Exército etíope quem, em 2006, expulsou os extremistas de Mogadíscio e contribui actualmente com 4400 homens para a missão de paz da União Africana na Somália. Já em 2015, na primeira visita de um Presidente americano ao país, Barack Obama tinha sido criticado por elogiar os progressos feitos pelo Governo “democraticamente eleito” de Hailemariam.

Adis Abeba garantiu que “os protestos ilegais” foram rapidamente debelados, culpando “forças inimigas da paz” por confrontos que, insiste, visam alimentar divisões étnicas para desestabilizar e enfraquecer o país. A televisão estatal divulgou supostas confissões de alguns destes “terroristas étnicos”, em que estes contavam como se tinham organizado através do Twitter ou do Facebook.

Mas se há alguns relatos de violência sectária e se, como sublinha o jornalista da NPR, a Etiópia está política e geograficamente dividida ao longo de linhas étnicas muito claras, os organizadores dos protestos insistem que esta não é uma luta tribal, mas contra a repressão governamental. “Isto é uma Intifada”, explicou à AFP Merere Gudina, líder de um dos partidos que se juntou aos protestos em Oromia, dizendo que estes não vão parar enquanto o Governo não reconhecer os direitos políticos dos opositores.

“Esta é uma crise sistémica que ameaça as fundações de um modelo de Governo que foi criado há 25 anos, e que é autoritário e centralizado”, disse à mesma agência Rene Laford, investigador e especialista em política da região do Corno de África, sublinhando que nunca desde 1991 a Etiópia assistiu a uma convulsão tão generalizada. Uma crise, acrescenta Mohamed Ademo, que o Hailemariam se arrisca a agravar “insistindo em responder aos protestos apenas com a repressão”. “Seja qual for o ângulo de onde se olhe, estes são tempos extraordinários para Etiópia e os jovens estão a dizer ‘Nu Gaye Baqa’ – já chega!”

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