Trump sugeriu que Clinton seja assassinada? É claro que não e a culpa é dos media

Depois de um dia relativamente sossegado para recuperar de uma semana complicada, o candidato do Partido Republicano voltou a captar todas as atenções do ciclo eleitoral nos EUA com mais uma declaração polémica.

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O candidato do Partido Republicano num comício da Carolina do Norte Sara D. Davis/AFP

A estratégia de Donald Trump na campanha para as eleições presidenciais norte-americanas já não deveria surpreender ninguém, mas há dias em que as suas declarações provocam uma polémica ainda maior do que a polémica anterior – aquela que é quase sempre rotulada como a mais escandalosa até então.

Depois da guerra de palavras com os pais do muçulmano Humayun Khan, o capitão do exército norte-americano que foi morto em 2004 no Iraque, o candidato do Partido Republicano é agora acusado de ter sugerido, na noite de terça-feira, que os defensores do direito à posse de armas tratem de Hillary Clinton com as próprias mãos.

Durante um comício na Carolina do Norte, Donald Trump voltou a lembrar aos eleitores que uma vitória de Hillary Clinton significa que a candidata poderá nomear juízes mais à esquerda para o Supremo Tribunal – e, dessa forma, pôr em causa a Segunda Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que protege o direito à posse de armas.

Mas a forma como sugeriu que esse problema seja resolvido lançou o país numa nova discussão sobre os limites do que se pode dizer numa campanha eleitoral: "Se ela puder escolher os seus juízes, não há nada que vocês possam fazer. Mas em relação às pessoas que defendem a Segunda Emenda – talvez possam fazer alguma coisa, não sei."

Tal como tem feito em muitas outras ocasiões desde que anunciou a candidatura, há um ano, Trump rapidamente desmentiu que as suas palavras tivessem a carga que lhe quiseram atribuir, e disse que apenas tentou estimular os defensores do direito à posse de armas a não ficarem em casa no dia das eleições, para ajudarem a derrotar a candidata do Partido Democrata – e, tal como tem feito em muitas outras ocasiões desde que anunciou a candidatura, a culpa disso é toda dos media.

"Os media estão desesperados para desviar as atenções da posição de Clinton contra a Segunda Emenda. Eu disse que os cidadãos que defendem a Segunda Emenda devem organizar-se e votar nas eleições para salvarem a nossa Constituição!", escreveu Donald Trump no Twitter.

Mas na imagem do discurso de Donald Trump é visível a reacção de espanto de um dos seus apoiantes – assim que o candidato acabou de proferir a polémica declaração, um homem vestido com um pólo vermelho, no canto inferior direito do ecrã, parece ter percebido o que Trump queria mesmo dizer.

A chuva de críticas e acusações de incitamento ao assassinato de Hillary Clinton começou a cair de todos os lados. Até no interior do Partido Republicano, embora com menos dureza do que quando o candidato proferiu outras declarações que foram vistas (cada uma delas, a seu tempo) como as mais devastadoras para a sua campanha.

Alguns exemplos? Quando disse que o senador John McCain não é um herói de guerra porque foi capturado; quando defendeu que um juiz nascido em Chicago na década de 1950 e filho de pais mexicanos não tem distanciamento suficiente para julgar o caso contra a chamada Universidade Trump porque está prometida a construção de um muro na fronteira com o México; ou quando sugeriu que a mãe do capitão Humayun Khan não falou durante a convenção do Partido Democrata porque é muçulmana, iniciando uma guerra de palavras com os pais do soldado americano que foi mal recebida por muitos eleitores do Partido Republicano.

Desta vez, as críticas mais duras partiram da campanha de Hillary Clinton, de activistas dos direitos humanos e várias personalidades da sociedade norte-americana, como Bernice King, filha de Martin Luther King Jr. "Como filha de um líder que foi assassinado, considero que os comentários de Trump são de mau gosto, perturbadores e perigosos", escreveu King no Twitter.

O candidato do Partido Democrata a vice-presidente, o senador Tim Kaine, repetiu o argumento de que Donald Trump não é uma pessoa suficientemente estável para se candidatar à Presidência dos Estados Unidos: "Ninguém que se candidate a um cargo de liderança, especialmente à Presidência, a liderança do país, deve caucionar a violência, e foi isso que ele fez", disse Tim Kaine durante uma passagem por Austin, no estado do Texas. As declarações de Trump sobre a Segunda Emenda – disse o mesmo candidato – "são uma janela para a alma de uma pessoa que não tem o temperamento certo para o cargo".

Do lado do Partido Republicano, o líder da Câmara dos Representantes, Paul Ryan, disse que as palavras de Donald Trump "foram uma piada que correu mal". Mas adiantou que "nunca se deve brincar com isso" e espera que "ele clarifique a situação rapidamente".

Como líder da Câmara dos Representantes, Ryan é o republicano com o cargo mais importante no actual cenário político dos Estados Unidos – é o segundo na linha de sucessão do Presidente, a seguir ao vice-presidente (que é também, por inerência, o líder do Senado). É público que Paul Ryan não concorda com muitas das políticas de Donald Trump e tem criticado muitas das suas declarações; ainda assim, depois de ter hesitado vários meses, acabou por declarar o seu apoio ao candidato, tendo presidido à convenção do Partido Republicano, em Julho.

Mais do que ter afirmado que apenas queria apelar ao voto contra Hillary Clinton nas eleições de Novembro, Donald Trump disse numa entrevista à Fox News que "não pode haver qualquer outra interpretação", e voltou a acusar os jornais e as estações de televisão mais influentes de estarem a fazer campanha contra si, ao interpretarem cada declaração sua como se fosse algo mais do que uma piada: "Quer dizer, tenham paciência."

É um padrão que salta à vista na campanha de Donald Trump – depois de uma declaração polémica, o candidato ou nega ter dito o que disse, ou culpa os media por exagerarem na interpretação dessa declaração.

Em Julho do ano passado, quando chamou "falhado" (ou "perdedor", a expressão original foi loser) a John McCain por ter perdido as eleições contra Barack Obama em 2008 e de ter sugerido que não o considerava um herói de guerra por ter sido capturado, Trump disse que nunca tinha chamado ao senador do Arizona um "falhado" e que nunca tinha dito que McCain não era um herói de guerra.

Tal como noutras situações, as palavras de Donald Trump sobre John McCain deram-lhe espaço suficiente para desmentir aquilo que disse, ou aquilo que pretendia transmitir: "Não é um herói de guerra. É um herói de guerra porque foi capturado. Eu gosto de pessoas que não foram capturadas. É um herói de guerra porque foi capturado." É um conjunto de frases que, isoladas, podem significar tudo e o seu contrário: Trump não considera McCain um herói de guerra, mas Trump disse que McCain é um herói de guerra.

O argumento da piada foi usado quando Trump sugeriu que a Rússia encontrasse os cerca de 30.000 e-mails que Hillary Clinton mandou apagar do seu servidor pessoal – uma decisão que valeu à candidata do Partido Democrata uma investigação por parte do FBI. Quando Trump foi acusado de, na prática, incitar um velho adversário a lançar um ataque informático contra os Estados Unidos, o candidato respondeu quer era evidente que estava a ser sarcástico. O argumento da negação foi usado quando Trump imitou um jornalista que sofre de uma doença congénita, em Novembro do ano passado: para além de ter dito que nem sequer conhecia o repórter, o candidato exigiu um pedido de desculpas.

Mas em 2008, durante as conturbadas eleições primárias no Partido Democrata, Hillary Clinton viu-se no meio de uma polémica semelhante à que foi suscitada esta semana por Donald Trump – quando argumentou que a corrida entre ela e Obama ainda não estava fechada, e que a luta pela nomeação poderia chegar até Junho, Clinton deu o exemplo do seu marido, Bill Clinton (que só garantiu a nomeação em Junho de 1992), e recordou que Robert Kennedy foi assassinado em Junho durante as primárias do Partido Democrata, em 1968, quando era o favorito.

Hillary Clinton pediu desculpa pouco depois, mas o seu comentário foi muito criticado pela campanha de Barack Obama, até porque surgiu uma semana depois de uma outra declaração polémica por parte de um dos candidatos do Partido Republicano, Mike Huckabee, durante um evento organizado pela National Rifle Association: "Aquele era o Barack Obama, tropeçou numa cadeira quando se preparava para fazer um discurso. Apontaram-lhe uma arma e ele atirou-se ao chão."

Mas querer comparar as eleições de 2016 com qualquer outra realizada nos tempos modernos é esquecer que há apenas oito anos, precisamente naquelas eleições de 2008, o candidato do Partido Republicano, John McCain, não só não lançava insinuações ou ataques pessoais contra o seu opositor do Partido Democrata como chegou a defender Barack Obama.

Num dos seus comícios, quando dois dos seus apoiantes disseram que temiam uma Administração Obama e que o então candidato do Partido Democrata tinha ligações ao terrorismo porque era "um árabe", McCain foi peremptório. "Tenho de dizer que ele [Obama] é uma pessoa decente e que não há razões para ter medo dele se for eleito Presidente dos Estados Unidos", disse o candidato republicano, que não recuou perante os apupos dos seus apoiantes: "Ele é um homem de família e um cidadão decente, com o qual discordo em assuntos fundamentais."

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