ANC descobre que pode ser derrotado

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Ter 55% dos votos a nível nacional e interpretar este resultado como derrota, declínio ou pesadelo é um paradoxo do Congresso Nacional Africano (ANC) e da África do Sul. É fácil explicar. O veterano jornalista Allister Sparks, deputado pelo ANC em 1994, traçou há anos um quadro da erosão eleitoral do ANC: começou por ter 69,9% dos votos (1994), desceu para 62% em 2009 e manteve-se na casa dos 60% em 2011. Em 2014 obteve surpreendentemente 62,2%, mas nestas eleições caiu para 53,9%, quando a meta era “acima dos 60%”.

Sublinhava Sparks que o momento crítico de um partido hegemónico só chega quando ele percebe que um dia poderá ser derrotado, perdendo a maioria absoluta. Até lá nada mudaria. Esse momento crítico seria quando baixasse dos 55%. Aconteceu na terça-feira.

Não se tratava de meras eleições locais. Foram assumidas como nacionais tanto pelo ANC como pela Aliança Democrática (DA). “O que está em jogo é o destino do ANC e do seu maior rival, a DA”, resumiu o jornalista Martin Plaut. Para outros analistas eram um “referendo” sobre o Presidente, Jacob Zuma.

Uma desgraça nunca vem só. O ANC perdeu para a DA alguns dos seus bastiões históricos, como a região metropolitana Nelson Mandela Bay, com Port Elizabeth, e a capital, Pretória. Em Joanesburgo, onde a contagem ainda não terminou, o ANC tem uma ligeira vantagem. Na Cidade do Cabo, “feudo” da DA, foi literalmente esmagado. É um corte psicológico. Escreve o politólogo Richard Calland: “A noção de que o domínio eleitoral do ANC é inabalável foi estilhaçada. As rédeas do poder estão a escorregar-lhe das mãos. Ele pode ser desafiado.” A ameaça não é a desagregação, mas uma lenta erosão.

Abre-se uma fase inédita na política sul-africana: a era das coligações. O “kingmaker” será o jovem demagogo Julius Malema, antigo chefe das juventudes do ANC e líder dos Combatentes pela Liberdade Económica (EFF), que propõe a nacionalização das terras dos brancos, das minas e da banca e que foi há anos condenado por incitamento ao ódio racial. Falhou o objectivo de triplicar a votação de 2014, em que obteve 6%. Mas será ele a decidir das coligações. E, no mínimo, vai ser muito complicado.

“Com a bênção de Deus”

Temos de voltar atrás. É preciso lembrar que o ANC é o partido de Mandela e da luta contra o apartheid, aquele em que vota o eleitorado negro, que constitui 80% do total. O seu principal concorrente, a Aliança Democrática (DA), é a herdeira dos partidos anti-apartheid do século XX, que reuniam brancos liberais, sobretudo anglófonos, mestiços e indianos. Mas a partir de 2006, quando começou a ter resultados importantes, o ANC passou a tratá-la como “o partido dos brancos”.

O ANC é hegemónico, controla todo o poder. Tem o direito histórico de governar e concebe a sua hegemonia como eterna. O secretário-geral, Gwede Mantashe, declarou há dias numa cerimónia religiosa: “Deus deu ao ANC a sua bênção para dirigir a África do Sul.”

O poder do ANC assentava na chamada “tripla aliança”: ANC, Cosatu (a confederação sindical) e Partido Comunista Sul-Africano (SACP). Com o tempo tudo mudou, escrevem Martin Plaut e Paul Holden no livro Who Rules South Africa?, 2012 (Quem dirige a África do Sul?). “O ANC já não é o movimento que foi durante a luta contra o apartheid.” Já não se limita à “tripla aliança”, passou a ter mais “bases de poder”, como os novos capitalistas negros, as agências rivais de segurança e, inclusive, parte da elite branca. Ser capitalista e dirigente do ANC não é uma raridade. “Tornou-se numa força crescentemente conservadora que representa as aspirações duma classe média negra.” Os sindicatos vão perdendo a capacidade de controlar a endémica agitação social. A tragédia dos mineiros de Marikana, em 2012, foi uma ilustração. Também o SACP perdeu parte da influência de outrora.

O poder do ANC assenta também em vastas redes clientelares, em que se combinam política, dinheiro e corrupção. São denunciadas pelos que ficam de fora. O voto nas eleições de terça-feira foi largamente determinado pela revolta contra a incompetência, a arrogância e a corrupção do ANC. Para lá da ineficiência económica: o banco nacional prevê para este ano um “crescimento 0%”.

Zuma

Na primeira linha da corrupção está Jacob Zuma, Presidente da República e do ANC. A sua carreira foi marcada por escândalos. Em 2007, sendo presidente do partido, foi investigado e objecto de acusação em 783 delitos, designadamente corrupção e fraude fiscal num negócio milionário de compra de armas. Isso não o impediu de ascender à presidência, em 2009, depois de afastar Thabo Mbeki da liderança do ANC. Em Março passado, foi condenado pelo Tribunal Constitucional, por unanimidade, a devolver ao Estado parte dos 16 milhões de euros que desviou para obras na sua mansão privada.

Onde reside a força de Zuma? Controla a mais poderosa rede clientelar, o que lhe assegura a maioria na direcção do ANC. É hoje o político mais impopular da república. Por isso se falou das eleições locais como um “referendo” sobre o Presidente. Adam Habib, professor de Ciência Política, é categórico: “Foi, sem dúvida, um voto anti-Zuma.” Espera que a ala “modernista” do ANC o faça pagar por um desastre eleitoral histórico. “Vamos assistir a um conflito maciço dentro do ANC.” É a oportunidade de ajustar contas e lavar a fachada do partido. Terá Sparks razão e, enfim, algo irá mudar?

Mmusi Maimane

Em Maio de 2015, Mmusi Maimane, um jovem negro de 35 anos, nascido no Soweto, foi eleito presidente da Aliança Democrática. Sucedeu a Helen Zille, uma militante histórica anti-apartheid — mas branca.

Formado em Teologia e bom orador, acaba de obter um grande sucesso nesta campanha eleitoral. Provou que DA podia vencer fora do Cabo. Mas a sua implantação no eleitorado negro é muito escassa. Pode mudar o quadro político, mas não é uma alternativa ao ANC. Entre 2006 e este ano, a DA passou de 16% para 26,2%. Não alcançou ainda a barreira psicológica dos 30%. Raciocina estrategicamente a um prazo de dez anos e aposta na geração dos “born free”, os que nunca viveram o apartheid.

Há quem tenha mais urgência. “A África do Sul necessita desesperadamente de uma alternativa relevante, credível e não-racial ao ANC dominante”, declara o politólogo William Gumede. O caminho poderia ser a fusão com outros pequenos partidos “negros”. A DA encarnou a oposição liberal branca do tempo do apartheid. “Uma oposição forte e moderna tem de apelar também à maioria negra. (...) A DA, apesar de ter um bom número de dirigentes negros, ainda é percebida como um partido dominado por brancos e a quem faltam as credenciais da ‘luta’ [do ANC]. O grande problema da oposição sul-africana é que os partidos ‘brancos’ são vistos como defensores dos brancos e os ‘negros’ como defensores dos interesses dos negros.”

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