Putin, a Rússia, a Europa e Trump

Putin apostou tudo não apenas na defesa tradicional, mas também na “ciber-guerra”. Moscovo é hoje a Meca dos “hackers”

1. O primeiro dia da Convenção do Partido Democrata foi marcado pela divulgação de um sem número de e-mails em que a direcção do partido favorecia Hillary Clinton em detrimento de Bernie Sanders. Fontes de Clinton deixaram escapar a convicção de que esses e-mails tinham sido “captados” pelas autoridades russas e de que estas – com grande sentido de oportunidade – os fizeram divulgar naquele preciso dia. Com o óbvio intuito, claro está, de ajudar Donald Trump, que tem mostrado uma grande empatia pela “Administração” Putin. Trump, que não perde uma ocasião para levar por diante a sua guerrilha eleitoral, logo veio instar a Rússia – já que era ela a autora do acto de “pirataria” informática – a divulgar o conteúdo de todas as mensagens. Eis o que deu origem a mais uma polémica e deixou a CIA e o Pentágono em quase desespero, ante a perspectiva de Trump poder vir a sentar-se à mesa da sala oval.

2. Este episódio, que parece apenas mais uma das bizarras e caricatas façanhas de Donald Trump, diz muito sobre Putin e a Rússia – mais do que possa pensar-se. Vladimir Putin entrou na política nacional russa, depois de uma sólida carreira no KGB e no governo de São Petersburgo, para o cargo de Primeiro-Ministro pela mão do hoje esquecido Boris Yeltsin. Em 1999 à frente do Governo e em 2000, já como Presidente, Putin tentou introduzir reformas económicas na Rússia. Pensava que talvez fosse possível fazer na Rússia o que Deng Xiao Ping fez na China: criar gradualmente um capitalismo de Estado, mantendo um férreo controlo político da sociedade e apelando ao tradicional sentido nacionalista do povo russo. Rapidamente se foi dando conta de que a reforma económica do grande império era praticamente inviável e que teria de se render a uma economia assente na exportação de matérias-primas, designadamente de energia. E também – et pour cause – à densa e dura teia de oligarcas que o fim do regime comunista soviético criara e desenvolvera. Na verdade, a Rússia, saída de uma economia medieva do tempo dos czares para uma economia colectivista do tempo do comunismo estalinista, nunca conheceu nem aprendeu as regras do mercado e do capitalismo. Bem ao contrário da China que, apesar do interregno de quarenta anos de comunismo maoísta, tinha uma tradição mercantil e comercial milenar. E que tem uma natural apetência pelo lucro e pela especulação, bem documentados no hábito tão profundamente enraizado dos jogos de fortuna e azar. Ou seja, a adaptação da China e dos chineses ao capitalismo global, ao jogo financeiro e à economia de mercado tem algo de quase “natural”. É justamente esse “algo” que falta e falha à tradição russa e à mentalidade do seu povo. E sem esse espírito, as ditas reformas de Putin, mesmo admitindo que eram bem-intencionadas e foram bem orientadas, caíram em terreno infértil.

3. Não sendo capaz de sair dos limites de uma economia essencialmente extractiva, produtora e exportadora de matéria primas, Putin teve que mudar de escopo estratégico. Se as reformas económicas não davam resultado, então teria de virar-se para o campo que conhece e que domina: a geopolítica, a geopolítica pura. Ainda no seu primeiro mandato presidencial, é já visível este desiderato de retomar a grandeza da Rússia pela velha via do rearmamento, do controlo da informação e dos serviços de inteligência à escala global. E Putin, na boa linha russa, começou a jogar no tabuleiro de xadrez europeu. Começou por fazer “bullying” político à Ucrânia e à Geórgia e estimular a agitação na Moldávia, em nítida provocação à Roménia. E por estender o “bullying” aos países bálticos, designadamente através das populações russófonas, muito representativas na Estónia e na Letónia. Não deixou de assediar militarmente – geralmente pela via submarina – a Finlândia e a Suécia, países neutrais, que não fazem parte da NATO. E depois avançou decididamente para a política interna de muitos dos Estados europeus. A presença russa na política búlgara e na política sérvia é um dado antigo e quase inescapável. Mas a aliança que fez com Orban na Hungria, essencialmente assente na venda da energia a preço muito baixo, é já da ordem do contra-natura. O apoio financeiro aberto à Frente Nacional de Marine Le Pen não engana ninguém e o suporte financeiro discreto ao Syriza na Grécia ou aos comunistas em Chipre mostra bem que Putin aposta na desestabilização da situação política interna dos países da União. Corre em todo o lado que deu ajudas ao UKIP para promover o Brexit e que empresta dinheiro à maioria dos partidos de direita radical, da Holanda á Áustria e à Suécia. Recentemente houve notícia da prisão de um espião português em Roma que traficava informação para a Rússia e de voos russos no nosso espaço aéreo. Nada é descurado, nada fica ao acaso. Nem o jardim à beira-mar plantado.

4. É aqui que aquele episódio à volta de Trump entronca e se torna verosímil. Putin apostou tudo não apenas na defesa tradicional, mas também na “ciber-guerra”. Moscovo é hoje a Meca dos “hackers”, possuindo o mais sofisticado centro de pirataria informática e de organização sistemática de “hacking” do mundo. Qualquer empresa de “ciber-segurança”, mesmo modesta, atestará esta afirmação. Não é por acaso que Snowden foi acolhido em Moscovo e que Assange está confinado à embaixada do Equador, um satélite do socialismo bolivariano, regime apoiado pelos russos na Venezuela e, não por coincidência, financiador do “Podemos” em Espanha.

5. Sou um crítico da política europeia para a Rússia, que tem oferecido a Putin muitos dos pretextos de que ele carece para levar a sua estratégia avante. Mas ninguém deve esquecer, seja nas crises que hoje afectam a União Europeia, seja nas eleições americanas, que Putin é um dos actores que está em cena – um actor que nos conhece bem melhor do que nós a ele. E que, ponto a não esquecer, sabe mais sobre nós do que podemos suspeitar ou adivinhar.

Sugerir correcção
Ler 35 comentários