Daniel Ortega implodiu a oposição e governa sozinho a Nicarágua

O antigo guerrilheiro não tem adversários para as eleições deste ano, que quase certamente lhe vão dar um quarto mandato. Pode ter sido ele a enviar um líder fantoche para a oposição que pediu o afastamento dos seus próprios deputados.

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Mural de Miguel Ortega, fotografado em 2001, ano em que o homem forte da Nicarágua perdia novamente as eleições. Oswaldo Rivas/Reuters

O Daniel Ortega de há dez anos era um homem reformado. Ele próprio o dizia no trilho de campanha para a presidência da Nicarágua. O comandante sandinista em si tinha desaparecido e levado com ele as acusações de massacres de indígenas e os deslocamentos forçados de milhares de pessoas perpetrados pela sua junta militar na primeira metade da década de 80. Ortega afirmava que era um homem mudado, que nada tinha que ver com os seus anos cinco anos de presidência, em que liderou o país ao estilo soviético, expropriando camponeses, colectivizando a propriedade privada e disputando abertamente a Igreja Católica.

Esses tempos tinham chegado ao fim. O Ortega de 2006 era o mesmo que respeitara a vontade do povo quando este o afastou do poder em 1990 e o derrubou novamente nas urnas em 1996 e 2001. Era, aliás, o homem recentemente ilibado das denúncias de abuso sexual e incesto vindas da sua enteada, que disse ter sido repetidamente violada desde os seus 12 anos e ao longo da presidência do padrasto. E assim reformado, gozando o benefício da dúvida de quem tem escândalos que remontam a um período de guerra civil contra uma guerrilha armada e treinada pelos Estados Unidos, Daniel Ortega tornou-se outra vez Presidente do Nicarágua há dez anos.   

Hoje não tem intenções de abandonar o cargo e faz todos os possíveis para concentrar em si, e na sua família, o poder absoluto sobre a Nicarágua e os seus seis milhões de habitantes. Pode tê-lo conseguido na sexta-feira, dia em que fez com que a única oposição relevante cometesse uma espécie de suicídio político e fosse afastada em bloco dos seus assentos parlamentares, nos quais agiam, pelo menos até à última semana, como o único instrumento de contra-poder nacional. Sem oposição parlamentar e com todos os aparelhos de Estado sob o seu controlo, Ortega tem o caminho ainda mais livre para as presidenciais de Novembro e encontrar uma via para perpetuar a sua dinastia.

A manobra de Ortega tem ares de legitimidade. No início de Junho, o Supremo Tribunal do Nicarágua destituiu Eduardo Montealegre da liderança do Partido Liberal Independente (PLI) e decidiu que o seu lugar deveria ser ocupado por Pedro Reyes, um político praticamente desconhecido que há anos processou Montealegre para conseguir a liderança da maior força da oposição no país. A decisão teve um efeito duplo: entregou o poder a uma figura que muitos críticos dizem ser uma toupeira enviada por Ortega e anulou as nomeações do PLI para as presidenciais de Novembro.

Oposição e críticos bradaram contra golpe de Estado dos sandinistas, mas a população não saiu às ruas nem se avistaram grandes ondas na comunidade internacional. Ortega via-se subitamente sem adversários para as eleições deste ano, mas os males da oposição ainda não tinham terminado: confrontado com militantes que se recusavam obedecer-lhe – ou a mando do Presidente, como muitos argumentam – Pedro Reyes tomou a sua primeira decisão como líder do PLI e pediu a demissão dos deputados do seu próprio partido e do aliado parlamentar, o MRS. O Tribunal Eleitoral aprovou o seu pedido na sexta-feira, esvaziando o Parlamento das vozes críticas a Ortega.

Sem partido ou representação parlamentar, restou aos opositores queixarem-se novamente nas televisões. “Os seus rostos diziam mais do que as suas palavras”, escrevia o El País. “O assombro demonstrava que não estavam preparados”, argumentava o diário espanhol, citando depois o ex-deputado Wilber López, antigo chefe da bancada oposicionista, que disse que a decisão do Tribunal Eleitoral não era mais do que a “demolição do último bastião de democracia institucional e do Estado de Direito” e prometeu levar o caso a instituições internacionais, como a Organização dos Estados Americanos.

Aconteceu tudo sem que as ruas de Manágua se enchessem de protestos ou que a comunidade internacional interviesse – a embaixada dos Estados Unidos no Nicarágua publicava na sexta-feira comunicados de imprensa falando dos seus projectos de construção de redes empresariais entre países.

O estilo repressivo de Ortega suprimiu parte da sociedade civil, mas a falta de manifestações parece dever-se sobretudo à sua popularidade: a Nicarágua continua a ser o segundo país mais pobre no Hemisfério Norte – o primeiro é o Haiti –, mas o ex-comandante sandinista pôs o país na rota do crescimento económico desde que chegou ao poder em 2006, abrindo os braços à iniciativa privada e aos petrodólares da Venezuela. Três em cada dez nicaraguenses são pobres, mas a inflação e o desemprego estão em queda e a economia cresceu na ordem dos cinco por cento nos últimos cinco anos.

O único protesto de relevo na Nicarágua veio da sua Câmara do Comércio, que nos últimos anos se tornou num aliado improvável do homem que há pouco mais mais de duas décadas seguia à risca a cartilha económica soviética. Os empresários pediram respeito pela Constituição e que se evitasse “a concentração de poder em prejuízo da democracia”. É pouco provável que os seus protestos surtam efeito. Ortega, num termo recorrente entre observadores do país centro-americano, parece ter conseguido enfim fazer do Nicarágua a sua “quinta de família”.

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