Um golpe de brincar?

Provavelmente só muito mais tarde saberemos se a batuta de Erdogan esteve envolvida numa intentona na aparência pueril, ou se este é um primeiro aviso de que o controlo total do Presidente começa a abrir brechas.

A recente instabilidade política na Turquia, aparentemente fruto de um malogrado golpe de Estado, surpreende quem, como eu, por via profissional, conhece razoavelmente a realidade daquele país. Não pela circunstância da intentona em si, mas pelos seus contornos. Julgo que hoje já ninguém duvida que Erdogan, apesar de eleito, governa com pulso de ferro aquele país de transição entre dois continentes, desde 2003 a 2014 como primeiro-ministro, e daí até aos nossos dias como Presidente da República. A colagem ao fundador da Pátria, Ataturk, foi imediata. Mas Erdogan está muito longe daquele que, lutando contra a humilhação imposta a este povo na sequência da I Grande Guerra, soube liderar o país, numa região particularmente difícil, pelos caminhos do secularismo, rejeitando o islamismo radical. Na law in the books, não há dúvidas que a Turquia é uma república parlamentar, mas todos sabemos a distância que daí vai à law in action.

Basta falar com os turcos para perceber que as questões políticas são um tabu, que a liberdade de imprensa é uma miragem, e que o actual Presidente deseja instalar, passo a passo, uma república islamista mais ou menos radical. O culto do líder está um pouco por todo o lado, como verifiquei, desde logo, nos gabinetes dos reitores de Universidades turcas, nomeados pelo executivo e fiéis leais a Erdogan. Quando se tenta abordar a questão dos direitos fundamentais, o assunto passa a incómodo, apesar de, em boa parte por simples operação cosmética, vários congressos de Direito aí terem lugar e, ao menos na letra da lei, o ordenamento jurídico turco não se distanciar de um outro da Europa ocidental.

Pensava-se que Erdogan teria as Forças Armadas na mão, a quem trata principescamente, pelo que os acontecimentos de agora inquietam. Mais ainda, a debilidade da operação, a aparente falta de coordenação e a ausência de um trabalho de campo junto da população civil. Parece ter sido esta a salvar o regime. Terá sido uma mera orquestração para revestir o Presidente de mais poderes, tendo já sido anunciado um possível regresso da pena capital? É certo que nos últimos tempos Erdogan vinha perdendo apoio no país real e nada como um inimigo comum (ainda que controlado ou mesmo manipulado) para unir as hostes. Esta, é bem de ver, trata-se de uma mera especulação, sem querer aqui ceder a uma qualquer teoria da conspiração.

A Turquia é um Estado de muito difícil governação, com feridas abertas como a questão arménia, a luta pela independência dos curdos, liquidada ou quase com os ataques que Erdogan tem ordenado a posições do Daesh e que, sabe-se, fazem meia-volta e bombardeiam posições do PKK. É um país de dois continentes, de esmagadora maioria muçulmana, ex-candidato à adesão na UE e que sempre enfrentou grandes entraves, sobretudo da França e, de forma menos ostensiva, da Alemanha. Não é nada previsível – muito menos agora – que a Turquia se junte ao clube europeu, ele também em processo de ruína. Esta instabilidade é mais uma prova para os detractores da presença turca na União, a que se soma uma população de cerca de 76 milhões de habitantes, simultaneamente um mercado muito apetecível e uma enorme dor de cabeça em termos de livre circulação de pessoas. Os últimos actos de barbárie em Nice, os anteriores em Paris e em várias capitais europeias não permitirão, arrisco-me a dizer nunca, que a Turquia se junte aos ainda 28, na prática já 27.

O próprio país já o não deseja, ciente da sua posição geoestratégica, das ligações favorecidas com os EUA, em especial no tempo da Guerra Fria em que funcionava como tampão ao poder da ex-URSS. O alinhamento com a NATO, em 1952, foi uma resposta decisiva dos turcos, o que os não tem impedido de jogarem duplamente com a Rússia de Putin. A Turquia percebeu há muito que vale por si e que se abrir as comportas a Oriente, esmaga ainda mais a Europa com os fluxos migratórios. Este gigante de nobilíssima História conhece bem o seu potencial e não lhe falta amor-próprio, insuflado por um nacionalismo com culto de personalidade de Erdogan, que também se assume como guardião de costumes, bastando ver o modo como a comunidade LGBT é ali tratada.

Provavelmente só muito mais tarde saberemos o que aconteceu em Ancara e em Istambul, se a batuta de Erdogan esteve envolvida numa intentona na aparência pueril, ou se este é um primeiro aviso de que o controlo total do Presidente começa a abrir brechas. No curto prazo, Erdogan sai vitorioso, sendo expectável um endurecimento em matéria de política interna, com possível instauração de estado de sítio ou de emergência, reforço de poderes do Presidente, maior controlo dos media e restrição aos direitos fundamentais.

O Presidente foi, sobretudo na pele de primeiro-ministro, o rosto da abertura do regime, muito provocada pelo namoro com a UE, bem como da estabilização económica. Mas nem só disto vive um povo: a liberdade plena, mais tarde ou mais cedo, vai galgar as margens do Bósforo.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e consultor da Abreu Advogados

 

 

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