Sokurov no Louvre

A mistura de misticismo e racionalismo é típica de Sokurov e já deu alguns filmes bastante poderosos. Francofonia não o é tanto.

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Aleksandr Sokurov, que já tinha filmado o Hermitage de São Petersburgo na Arca Russa, assina em Francofonia mais um exemplar de um subgénero em expansão, o “filme de museu” (outros exemplos recentes: a Visite au Louvre de Straub e Huillet e o National Gallery de Wiseman). E é duma “visita ao Louvre” que se trata, uma obra de encomenda resultante de um programa (Le Louvre s’offre aux Cinéastes) dinamizado pelo museu. Na Arca Russa filmava a cultura do seu país, num olhar ambíguo sobre um “paraíso perdido” que se arriscava a confundir-se com a Rússia imperial pré-1917.

Em Francofonia está em território cultural estranho - o que não o impede de começar o filme a banhar-se nessa Rússia antiga, sobre imagens e invocações de Tolstoi e Tchekhov, mostrados nos leitos de morte. Embora “exógena” ao contexto, essa presença inicial da morte assinala a ambiguidade do olhar de Sokurov sobre o espaço museológico: lugar de “vida” da arte e da cultura, ou o seu sarcófago? A ambiguidade é o dado mais intrigante, visível ainda na forma como insiste no Museu enquanto lugar de relevância política em primeiro lugar e só depois de relevância artística e cultural. As alusões ao imperialismo francês (há um Napoleão que se passeia pelas salas) e ao “saque” nos territórios ocupados ou colonizados, e a sua rima na história fil rouge do filme, a relação, durante a Ocupação da Segunda Guerra Mundial, entre o oficial nazi (o Conde Metternich) encarregue da supervisão dos bens culturais e o então director (Jaujard) do Museu. Havia aí uma boa história, clássica, renoiriana, sobre os antagonistas que se entendem para além do conflito e que, no caso, nobremente põem a defesa de um património que consideram “universal” à frente dos interesses sectários. De resto, no seu elogio de Paris, Sokurov faz uma defesa, por certo polémica, da pronta rendição francesa em 1940 e da declaração da capital como “cidade aberta”, entendidas como forma de salvar um património da destruição – e se aí se aproxima de uma apologia da colaboração, mais tarde, evocando a destruição maciça, em termos materiais e humanos, que os nazis causaram na URSS, converte isso num lamento, como se aos russos não tivesse sido concedido por Hitler o mesmo direito a “existirem”.

O filme toca variadíssimos temas, e isso acaba por ser uma pecha, como se trabalhasse em dispersão sem abocanhar coisa nenhuma. Nem mesmo o espaço do museu, nem mesmo as suas colecções, mais usadas para um teatrinho simbólico que é bastante kitsch – para além do Napoleão, há uma Marianne (de peito tapado) que por ali anda a declamar “liberté, egalité, fraternité”, no que parece um exercício de mau Godard. Há planos impressionantes – como aquele movimento em que a cãmara sobe da rua para o nível dos telhados de Paris antes de se voltar para baixo num contrapicado de 180º, provavelmente conseguido com recurso a um drone - mas que também deixam uma sensação de facilidade exibicionista – porque drone algum alguma vez baterá um movimento de grua de Preminger. Mas isso também resume a relação mal resolvida de Sokurov com o espaço do museu – entre o deslumbramento, quase religioso, com a “beleza” e com a sacralização da arte, e a vontade de abordar mais friamente os aspectos materiais, incluindo a política e a história. Esta mistura de misticismo e racionalismo é típica de Sokurov e já deu alguns filmes bastante poderosos. Francofonia não o é tanto.

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