Tribunal de Haia dá razão às Filipinas contra Pequim no processo do mar do Sul da China

Quase todas as reivindicações marítimas de Pequim são ilegítimas e não obedecem aos tratados da ONU. Já se sabe que Pequim não vai obedecer, resta saber como é que vai reagir.

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Exercícios militares da China perto de algumas das ilhas disputadas AFP

O Tribunal Arbitral de Haia declarou esta terça-feira que Pequim não tem laços históricos ou argumentos geográficos que justifiquem as suas reivindicações territoriais no mar do Sul da China e que, para além disso, os seus projectos de ilhas artificiais causaram danos irreparáveis ao meio ambiente. Já se esperava por esta deliberação há meses e ela foi mais longe do que muitos esperavam: o tribunal deu razão a quase todas as queixas interpostas pelas Filipinas e arrasou os fundamentos de que a China usa para conferir legitimidade às suas posses marítimas.

A China boicotou o processo, repetindo o argumento de que Haia não tem jurisdição sobre matérias relacionadas com soberania e aludindo várias vezes à ideia de que o processo era uma estratégia norte-americana para a privar dos preciosos recursos que reclama nas águas disputadas. Esta terça-feira, para além de se recusar a reconhecer o tribunal, como se esperava, a China revelou também uma primeira resposta militar, que muitos temem que venha a aumentar as tensões já existentes com os Estados Unidos.

Enquanto Manila reagia com optimismo cauteloso à declaração do tribunal, Pequim anunciava que os seus aviões comerciais tinham já as rotas afinadas para as ilhas artificiais e que iria construir uma nova fragata de lançamento de mísseis no seu estaleiro de Hainan, o ponto mais próximo das ilhas disputadas por vários dos seus vizinhos a sul. Mas há quem diga que isto é apenas o início. “A China vai responder com fúria, certamente em termos de retórica e possivelmente com novas acções no mar”, disse à Reuters Ian Storey, do think-tank Yusof Ishak, um instituto de estudos asiáticos sediado em Singapura.

A China tem razão em declarar que o tribunal não pode decidir sobre matérias de soberania e que qualquer disputa dessa natureza deve ser negociada com os seus vizinhos, como insistiu em dizer esta terça-feira. Ninguém espera, para além disso, que a deliberação em Haia force a China a abrir mão das águas por onde passa um terço do comércio marítimo mundial, e que são ricas em bolsas piscatórias, petróleo e gás. Mas este veredicto exerce pressões reais sobre Pequim, até porque esta é a primeira vez que a China foi chamada a responder no sistema de justiça internacional.

Haia abre um precedente legal ao determinar que a conhecida “linha de nove traços”, que delimita as ambições chinesas e se mantém mais ou menos inalterada desde 1947, não cumpre a Convenção da ONU para o Direito do Mar, que a China, as Filipinas e outros 167 países assinaram e segundo a qual um país tem direito a 200 milhas náuticas em redor de ilhas habitáveis — conceito que o tribunal recusou aplicar às construções artificiais, formações corais e rochosas que a China possui, encurtando extraordinariamente a sua zona económica exclusiva.

A China pode até ter boicotado o processo, não indicando um juiz ou faltando às audiências, mas isso não quer dizer que os seus líderes não tenham participado na troca de argumentos, em comunicados públicos ou através do seu aparelho mediático, que nos últimos meses esteve em campanha para descredibilizar a deliberação de Haia. E o seu principal argumento, usado pelo Presidente, Xi Jinping, no último ano, por exemplo, é o de que as ilhas no mar do Sul são território chinês desde os tempos antigos. Para Pequim, esse dado é “indisputável”.

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Na opinião unânime do colectivo de juízes, isso não é verdade. “Embora navegadores e pescadores chineses, como de outros países, tenham historicamente operado nas ilhas no mar do Sul da China, não existem provas de que a China tenha detido historicamente o controlo exclusivo dessas águas e os seus recursos”, lê-se na deliberação publicada esta terça-feira. “O tribunal conclui que não existe base legal para a China reclamar direitos históricos nas áreas marítimas dentro da ‘linha de nove pontos’”, adianta.

Impasse nas Filipinas

Para além de invalidar a interpretação chinesa sobre os seus próprios direitos territoriais, o Tribunal Arbitral de Haia determina que Pequim está a violar a soberania das Filipinas, ao explorar petróleo no extenso banco Reed. Afirma também que Manila tinha razão no caso que acabou por ficar conhecido como "o impasse no recife de Scarborough", quando a Marinha chinesa apreendeu oito barcos de pescadores filipinos em Abril de 2012, inadvertidamente pondo em marcha o processo que chegou a Haia no ano seguinte.

Quando soube do veredicto desta terça-feira, Manila respondeu com o receio de quem teme exagerar a pressão sobre os vizinhos chineses e provocar um súbito pico na tensão militar, que se tem agravado nos últimos meses, por admissão dos próprios chineses e norte-americanos, que se desdobraram em sucessivas demonstrações de força, seja em exercícios militares para os dias que antecederam a decisão de Haia, no caso da China, seja enviando uma pequena frota com um porta-aviões para perto das águas disputadas, como fizeram os Estados Unidos.

Antes ainda de o recém-eleito Presidente filipino, Rodrigo Duterte, convocar uma reunião extraordinária do Governo, o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Manila colocava mais ênfase nos pedidos de “sobriedade e contenção” do que se congratulava com a “decisão histórica”. As Filipinas sabem que uma vitória em Haia significa que qualquer um dos seus quatro vizinhos com reivindicações suas no mar do Sul da China tem motivos reforçados para também eles levarem a China ao tribunal internacional e que isso só ajudará a aumentar a tensão militar. Taiwan foi o único a contestar a decisão de Haia, por questões territoriais e pelo facto de vir mencionada como "autoridade chinesa" e não como "República da China".

Manila tem uma mão tão forte quanto limitada. Duterte disse que estava disposto a negociar algumas das suas reivindicações territoriais com a China, embora tivesse de vencer a sensibilidade do seu próprio povo, contrário a qualquer concessão a Pequim. Agora tem também uma grande potência preocupada em demonstrar que a sua assertividade militar tem consequências e que não perderá terreno para os seus rivais regionais, como o Japão, por exemplo, que esta terça-feira sublinhou que a decisão de Haia é “vinculativa e final”.

“Haverá uma gigantesca pressão sobre Pequim para que responda, para preservar as aparências, para demonstrar com algo mais do que palavras que não obedece e não dá crédito a uma deliberação sem validade legal, que não vai seguir essas regras e que defenderá o ‘espaço soberano’ no mar do Sul da China”, argumenta Ashley Townshend, investigador na Universidade de Sydney. E se isso quiser dizer novos avanços militares, como a imposição de um espaço aéreo de defesa, por exemplo, os Estados Unidos já disseram estar preparados para responder.

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