Uma cimeira sobre o Ocidente

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1. Em Varsóvia, as palavras que já não ouvíamos há muito tempo, que tinham ficado enterradas nos escombros do Muro de Berlim e na implosão da União Soviética, regressaram ao léxico da Aliança. “Dissuasão” é uma delas, a outra é “diálogo”, que corresponde à velha “détente” dos anos 1960. “Apaziguamento” ainda não entrou em cena e, provavelmente, não entrará, embora haja entre alguns governos europeus sinais de “rendição” à Rússia de Putin, por razões que vão dos interesses económicos até à incapacidade de pensar estrategicamente.

A questão, em Varsóvia e nos próximos anos, é saber se a Aliança ainda consegue responder à sua razão de ser inicial, ou seja, garantir a defesa colectiva dos seus membros. Não estamos, naturalmente, numa nova Guerra Fria, com o seu “equilíbrio do terror”, servido por uma guerra total entre duas concepções do mundo e duas superpotências rivais. A Rússia é um país em relativo declínio com um regime nacionalista que Putin gere com mão-de-ferro, recriando um “inimigo externo” que quer humilhar o país. Pretende recuperar a antiga zona de influência da União Soviética (não se sabe com que limites) e obrigar o Ocidente a reconhecer-lhe o estatuto de grande potência mundial num mundo de grandes potências. Obrigou a Europa a uma reviravolta na forma de pensar na sua própria segurança no pós-Guerra Fria. Apostou (e aposta) nas divisões europeias. O seu nacionalismo agressivo encontra hoje aliados inesperados nas forças populistas e nacionalistas que ganham terreno na paisagem política europeia e americana. Até agora a sua estratégia intimidatória na Ucrânia e a ocupação da Crimeia não conseguiram dividir a Europa nem a comunidade transatlântica. Não vai desistir, até porque considera que a crise europeia e a saída do Reino Unido vão funcionar a seu favor.

2. A calibragem da resposta – mais dura ou mais soft – foi a questão central que esteve em cima da mesa, em Varsóvia. O Presidente Obama ainda não desistiu de tentar unir os aliados europeus em torno de uma aliança indispensável para ambos os lados. Mesmo de saída, a sua popularidade na Europa mantém-se elevada e o seu empenho na segurança europeia é hoje muito mais firme do que no início do seu mandato, quando, em 2011, anunciou o famoso “pivô” para a Ásia-Pacífico. Via (com razão) na ascensão da China o maior desafio estratégico à ordem ocidental. A Europa ficou nervosa. Foram muitos anos a confiar a sua segurança aos Estados Unidos. Não lhe é fácil adaptar-se ao regresso da geopolítica. O problema inesperado que veio alterar os cálculos do Presidente (e os de muita gente) chama-se “Brexit”. Foi o elefante no meio da sala a que ninguém quis dar demasiada importância mas que tem uma importância enorme. O primeiro dia da estada de Obama em Varsóvia foi dedicado justamente a tentar “encaminhar” as coisas para uma boa relação entre o Reino Unido e a União Europeia que se reflicta também na Aliança Atlântica, reduzindo os estragos ao mínimo. Reafirmou a “relação especial” com a Grã-Bretanha e David Cameron respondeu, anunciando o seu empenhamento na defesa europeia e na modernização da frota nuclear britânica que deverá ser aprovada no Parlamento a 18 de Julho.

Diz Stefano Stefanini, um antigo embaixador de Itália na NATO, no site Politico Europe, que o “Brexit” fez de Varsóvia “uma cimeira sobre o Ocidente”. “Fracturando a União Europeia, o Reino Unido colocou um ponto de interrogação sobre a coesão ocidental”. A pergunta que se segue talvez seja exagerada, mas ajuda a pensar o futuro. “Se a União pode separar-se, porque não a NATO?” O problema maior do “Brexit” está em que, durante décadas, Londres teve um papel fundamental na relação da Europa com os EUA, nomeadamente para impedir a tentação de criar uma defesa europeia separada da NATO. A tentação vai voltar. Diz um diplomata francês citado pela AFP: “Londres constituía também um travão ao desenvolvimento da defesa europeia. Por um lado, a União perde uma parte do seu motor [militar], mas, por outro, perde uma parte do seu travão.” É isto que Obama quer evitar. A conclusão do embaixador italiano é que “a tarefa de manter a comunidade transatlântica unida vai cair sobre os ombros da América”. Dependendo, naturalmente, do que acontecer do lado de lá do Atlântico, onde a emergência do Tea Party e o êxito de Trump revelam uma opinião pública pouco interessada no mundo e ainda menos em continuar a pagar a segurança dos aliados. Clinton não pode ignorar esta mensagem, o que lhe reduz a margem de manobra.

3. Não foi por acaso que o secretário-geral da NATO e o Presidente americano classificaram esta cimeira como a mais importante desde o fim da Guerra Fria. Basta olhar para as crises que hoje envolvem a Europa.

Mas a unanimidade conseguida na resposta à Rússia também esconde alguns sinais de que pode não resistir por muito tempo. O comunicado final põe a ameaça russa em segundo lugar, depois do terrorismo, que é uma ameaça “imediata”, e antes da instabilidade no flanco sul. Stoltenberg utilizou uma linguagem mais moderada, afirmando que a Rússia não é um aliado, mas também não é uma ameaça ou, pelo menos, uma ameaça iminente. Hollande, antes da cimeira, descreveu a Rússia como parceira e não como inimiga. Mas também houve aspectos positivos. O primeiro está no envio de quatro unidades militares de combate de cerca de mil homens cada para rodarem entre as três repúblicas bálticas e a Polónia, os países que se sentem mais vulneráveis às intenções agressivas de Moscovo. É uma força simbólica (Putin consegue deslocar muito depressa 160 mil homens para a sua fronteira ocidental), mas o facto de envolver alguns países europeus ocidentais torna a mensagem bastante mais audível. Serão comandadas pelos EUA, Alemanha, Reino Unido e Canadá (que teve de preencher a ausência de outro país europeu). Diz o diário alemão Handelsblatt que “a chanceler já se comprometeu com o fortalecimento militar da aliança no flanco oriental”. Stoltenberg resumiu: “Um ataque visando um aliado enfrentará forças de toda a Aliança.”

4. A natureza revisionista do poder russo fez alterar a política externa americana, que começou por um “reset” que Obama propôs a Moscovo no início do primeiro mandato e que pareceu consolidado pela cimeira da NATO em Lisboa (2010).

Na última cimeira presidida por Bush em Bucareste (2008), a Aliança já tinha decidido pôr um ponto final no alargamento da NATO. No mesmo ano, Putin ordenou a ocupação de parte da Geórgia, tendo como pretexto um enclave onde predominava a população russa. Uma intermediação-relâmpago do então Presidente francês Nicolas Sarkozy pôs termo ao conflito sem se preocupar com as consequências. O assunto passou à história. Até à crise ucraniana, para a qual, como quase sempre acontece, os europeus não estavam preparados. A porta da Aliança não está hermeticamente fechada. O pequeno Montenegro entra na NATO, mas não tem dimensão para incomodar Putin. Em contrapartida, o Presidente russo já lançou uma série de diatribes contra a aproximação da Suécia e da Finlândia à NATO. Nos dois países, o único factor que impede o fim do estatuto de neutralidade é a opinião pública. “Fumam mas não inalam”, escreve no site Carnegie Europa Andrei Kolesnikov. A palavra “apaziguamento” ainda não é necessária. Pode ser que os europeus percebam que, perante a Rússia, o pior é dar um sinal de fraqueza.

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