“As pessoas estão zangadas e mostram-no com o ‘Brexit’ e Donald Trump”

Frustradas com os políticos e com o capitalismo, as pessoas desviam a sua raiva para a imigração. E “compram” o discurso nacionalista alimentado pela esquerda e direita. É o que constata a antropóloga especialista em migrações Nina Glick Schiller, de 71 anos.

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"Há uma enorme crise do capitalismo e culpa-se a imigração", diz Schiller Miguel Manso

Nina Glick Schiller, americana de Nova Iorque, viveu cinco anos em Inglaterra, onde foi professora na Universidade de Manchester. Justamente em Manchester ocorreram alguns episódios racistas denunciados no rescaldo da vitória da saída do Reino Unido da União Europeia no referendo, que se têm repetido em várias cidades do país - houve um aumento em cinco vezes dos crimes de ódio, segundo o National Police Chiefs' Council. Uma das explicações mais avançadas para o sucesso do “‘Brexit’ tem sido a questão da xenofobia e racismo: muitos britânicos votaram a saída para travar a entrada de imigrantes.

Autora de livros sobre migrações, entre eles Nations Unbound: Transnational Projects, Postcolonial Predicaments, and Deterritorialized Nation-States, onde analisa questões de raça, classe e identidade nacional, escreveu sobre o tema do transnacionalismo e transmigrações. A sua análise parte da ideia de que um imigrante mantém laços com o local de origem, move-se entre vários territórios e não tem necessariamente de escolher um país em detrimento de outro.

Professora emérita na Universidade de New Hampshire e na Universidade de Manchester, esta antropóloga foi fundadora da revista académica Identities, Global Studies in Culture and Power e desenvolveu pesquisa na Alemanha, Haiti e Estados Unidos. Esteve em Lisboa para participar da conferência Future Movements, no Instituto de Ciências Sociais, em Lisboa, dia 30 de Junho. 

O referendo britânico à União Europeia teve resultados muito diferentes consoante as regiões. Manchester, uma cidade que conhece bem, votou contra.
Isso não me surpreende. Estudei a narrativa urbana de líderes, investidores e cidadãos comuns em relação aos imigrantes e com isso tem-se uma fotografia muito diferente daquela que se vê nos media agora. Vê-se que a aceitação depende das necessidades de cada cidade, e há algumas cidades que conseguem ser bastante receptivas à imigração - não apenas Londres. As cidades que estão a tentar competir globalmente percebem que precisam das ligações que os imigrantes lhe trazem e que beneficiam disso de várias maneiras.  

Como é que isso se expressou com o ‘Brexit’, que foi lido como reflexo do contrário?
Tem havido uma contradição entre os medos que os políticos nacionais transmitem  sobre a imigração e as pessoas comuns, que têm múltiplas formas de encarar o fenómeno. Elas podem ter aquele discurso nacionalista em que dizem que o problema são os imigrantes. Isso está em todo o lado. Mas no dia-a-dia, sobretudo em contextos urbanos e especificamente em Manchester, têm relações próximas com pessoas de todo o mundo. Enquanto os políticos retratam muitas vezes os imigrantes como vivendo em bairros segregados, com as suas próprias culturas e instituições, a verdade é que isso varia: a maioria da pesquisa no Reino Unido mostra que não é verdade. O que é absolutamente surpreendente é que os argumentos constantes dos políticos sejam contraditos pelo vasto corpo de pesquisa académica - isto é verdade no Reino Unido, na Alemanha e nos Estados Unidos.

Em que é que contradizem exactamente?
A pesquisa mostra que os imigrantes não vivem segregados, fazem parte da economia local, trabalham com britânicos. Se se olhar atentamente, a grande divisão no referendo do Reino Unido foi geracional: os jovens, que têm vidas precárias, sem emprego garantido, têm trabalhos mal pagos, trabalham com pessoas de todo o mundo, da União Europeia e sem ser da União Europeia, votaram contra o ‘Brexit’ porque têm estas redes sociais [dos 18 aos 24 anos, o voto no 'Ficar' foi 73% e dos 25-34 de 62%]. As pessoas mais velhas, especialmente as reformadas que estão fora do mercado do trabalho e têm um sentimento de perda, estão mais predispostas a acreditar na retórica política que culpa a imigração.

Quando olhamos para as transformações na economia global vemos que as pessoas se sentem cada vez mais inseguras, há cada vez mais um sentimento de precariedade. Sente-se aqui, no Reino Unido e também na Alemanha. Perguntam-se porque é que a vida está pior quando o projecto de modernização das cidades fazia crer o contrário. E procuram respostas. A resposta que os políticos têm dado é que o problema são os imigrantes, que chegam e levam os empregos e o dinheiro - e isto não é verdade. É aqui que surge o voto no ‘Brexit’. As pessoas sentem a precariedade e não têm meios para expressar a sua raiva, até porque sentem que os políticos não os representam: votam na direita e as coisas pioram, votam na esquerda e as coisas pioram.

Há uma enorme crise do capitalismo e outros factores que nunca são abordados, culpa-se a imigração. Com isso vem uma forma de as pessoas dizerem que estão zangadas: no Reino Unido tomou a forma do ‘Brexit’, nos Estados Unidos toma a forma de [popularidade de] Donald Trump. 

Entre o Partido Trabalhista, de Jeremy Corbyn, e o Partido Conservador, de David Cameron, há diferenças na abordagem à imigração? 
Não. O Labour tinha consultas públicas em que abordava pesquisas académicas e só citava uma parte que mostrava que os imigrantes não se tinham integrado – essas mesmas pesquisas mostravam também que os imigrantes que se concentravam em certos bairros, à medida que o tempo passava, saíam e iam para outros lugares. Mas o Labour pegava na pesquisa e dizia que era preciso controlar a imigração e estar atento à imigração da Europa de Leste. O que não reconhecia é que é quase impossível imigrar para o Reino Unido fora da UE a não ser que se seja rico. Eu própria tive problemas em ficar além dos cinco anos porque há imensas regras, feitas pelo Labour e que os tories continuaram.

Quando o ‘Brexit’ chegou, o Partido Conservador estava dividido mas não sobre a imigração. O Labour esteve calado porque as bases do partido estavam atrapalhadas.

Tony Blair e Gordon Brown [anteriores líderes trabalhistas] começaram a fechar as fronteiras. Nenhum partido percebeu a integração da economia global e da força do trabalho global, assim como não percebeu a interdependência que o Reino Unido tem do resto do mundo. Estão a fechar as fronteiras e estão a deixar de fora todo o tipo de pessoas. Mais uma vez, as pesquisas mostram que a imigração não é o problema que está a causar a crise e é uma pequena fatia da população. 

Há um inquérito transatlântico à opinião pública sobre a imigração em vários países europeus e nos Estados Unidos [chama-se Transatlantic Trends: mobility, migration and integration, do German Marshall Fund]. Durante muito tempo a maioria da população era pró imigração mesmo se o discurso dos políticos fosse contra; há alguns anos, o Reino Unido foi o país em que a opinião era ligeiramente mais contra do que a favor. Mesmo que os políticos estivessem a dizer que reflectiam a opinião pública sobre a imigração estavam na verdade a fabricá-la, porque as sondagens mostravam o contrário. Isso ficou claro no ano passado quando os refugiados começaram a procurar ajuda na Europa - e muita gente ajudou.

Tem havido um aumento de ataques racistas e xenófobos desde o Brexit.
São ataques muito preocupantes. As pessoas acham que a culpa deve ser de alguém que vem de fora. E isso, aliado à aceitação de algumas das explicações que são dadas, é extremamente perigoso. O que nunca surge nos discursos é que não há economias nacionais. Todas as estatísticas vêm organizadas por país, o PIB, etc, como se houvesse uma economia nacional, quando na verdade estamos todos embrenhados nestas redes e fluxos de capital e de trabalho que não têm nada a ver com fronteiras nacionais. A formação da União Europeia criou alguma noção sobre isso.

Na semana passada, na Alemanha, alguém me trouxe café e chocolate local, mas claro que nenhum deles era local - e nenhum deles poderia existir sem o trabalho forçado nos países de onde vieram. Todos vivemos do trabalho de alguém em algum lugar. E temos mais em comum com a precariedade de cada um deles, em termos de desejo de melhoria de vida, do que temos com as pessoas que estão no grande capital da bolsa de Londres e ganham imenso dinheiro com estas trocas fingindo que estão a tomar conta do nosso bem-estar. Jeremy Corbyn tocou nisso mas está a ser atacado. 

O ressurgir dos nacionalismos está directamente ligado ao discurso contra a imigração, em que a campanha pelo 'Brexit' repega, muito ajudada pelo partido UKIP.
... o nacionalismo e o racismo estão ligados intrinsecamente. A ideia de que o conceito de raça e nação estão ligados é o mesmo que diz que 'temos ligações que são superiores quando as pessoas partilham o mesmo sangue, história e língua'. Essa é uma boa maneira de criar um discurso político que desvia a raiva para um lado e não para o sistema político, sobretudo quando os políticos sabem que as pessoas já não confiam neles. 

Donald Trump também tem este discurso anti-imigração. Acha que pode ser eleito Presidente dos Estados Unidos?
Pode. A classe política e os media parece que não tinham a mínima ideia do quão zangadas as pessoas estão. Trump tocou nesse ponto - tal como Bernie Sanders. O que é interessante: alguém fala com as pessoas zangadas e organiza um discurso nacionalista e racista, ou organiza um discurso virado para a justiça social e a distribuição económica. Têm duas agendas opostas mas falam para as mesmas pessoas zangadas e para esse sentimento de “não futuro”. Sanders fala para os jovens. E Hillary Clinton representa os bancos e o neo-capitalismo a uma escala global: continua a negar que há um problema, como Obama - dizem que a economia melhorou, que há mais empregos, mas isso não é a experiência das pessoas. 

Tanto os EUA como o Reino Unido são dois importantes actores internacionais. Como lê a grande a popularidade do discurso anti-imigração, xenófobo e racista nesses dois países?
Também aconteceu noutros sítios, como em Singapura, na América Latina, e não é a primeira vez que acontece. Quando há uma crise aumenta o discurso nacionalista, nos EUA chama-se 'nativismo' que faz a diferença entre 'nós' e 'eles' como explicação política: foi o que vimos com Hitler. Faz parte dos instrumentos políticos da História. Acho que a surpresa das pessoas tem a ver com a globalização: há a reestruturação de toda a economia global em estágios, começando nos anos 1970; nos anos 1990 estávamos todos a celebrar a globalização, mas o que não vimos é que a reestruturação não estava disposta a investir em serviços sociais e privatizou os serviços públicos. Com isso, veio uma nova forma de construção do Estado - escrevo sobre isso desde os anos 1990. Era visível o paradoxo que havia entre a celebração da globalização e o reaparecimento das bandeiras nacionais nas janelas em todo o lado nos EUA, em rituais de cidadania, etc. Também se nota isso na Escandinávia, onde as disparidades estão a crescer e os nacionalismos também.

Usou um termo, transnacionalismo, para falar das várias redes que os imigrantes continuam a ter…
… quando comecei a usar o termo transnacionalismo a ideia era criar uma nova linguagem em que as pessoas pudessem ver a multiplicidade de ligações que os migrantes têm, que podiam estar ligadas a mais do que um país. Isso agora está a ser posto em causa de novo, o facto de se poder ter ligações a mais de um país - a lealdade das pessoas está a ser questionada, a imaginação sobre o lugar onde as pessoas podem pertencer está a ser castrada, ainda que a globalização integre ainda mais. É isso que faz o 'Brexit'.

Há uma palavra que o sintetize?
Tenho falado da reconstituição do nacionalismo mas precisamos de uma palavra mais crítica e de um termo mais sonante - talvez trumpismo!

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