O fim da marca é o início de uma nova fase da Atlantis

Na fábrica da Atlantis em Alcobaça as peças já só são produzidas com a insígnia Vista Alegre, de olho nas exportações. Aqui, o controlo manual foi preservado ao longo dos anos como marca de “diferenciação”.

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Um colhedor do vidro na “zona quente” da fábrica de Alcobaça Daniel Rocha
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O molde e a cana de sopro são usados como técnicas Daniel Rocha
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A fábrica de Alcobaça nasceu em 1944 e a marca Atlantis em 1972 Daniel Rocha
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Ao mesmo tempo em que a peça acaba de ser moldada, é arrefecida com ar comprido Daniel Rocha
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A componente manual coexiste com a produção de outras peças em máquinas Daniel Rocha
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Os copos de bicos ganham forma numa prensa e depois são “queimadas” as linhas de junta Daniel Rocha
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Controlo de qualidade de uma peça, na “zona fria” da fábrica Daniel Rocha
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Peça de cristal é banhada a ouro, na sala de pintura Daniel Rocha

No dia 14 de Junho de 2016, algo mudou na fábrica de cristal e vidro do Casal da Areia, às portas de Alcobaça. O letreiro a identificar Atlantis – Cristais de Alcobaça S.A. não o denuncia. Lá dentro, nada de novo nos ritmos de produção, nas rotinas ou nas linhas de montagem. Mas algo mudou, naquela data, na fábrica do grupo Vista Alegre Atlantis (VAA), mesmo que verdadeiramente nada se tenha alterado no dia-a-dia dos 352 trabalhadores.

Os cálices, as garrafas, os decantadores, as jarras, os centros de mesa e as milhares de outras peças que ali são produzidas diariamente já deixaram de ser gravadas com a inscrição Atlantis. Desde dia 14 que todos os artigos estão a ser marcados com a insígnia da Vista Alegre, o mesmo logótipo aplicado às porcelanas da empresa centenária de Ílhavo, criado pelo designer gráfico Ricardo Mealha (1968-2015).

É o fim de um ciclo de 44 anos da marca Atlantis, fica a ligação emocional da população fabril, onde há funcionários com 20 e 30 anos de casa. Mas de resto nada mudou. O nome da fábrica e a designação do grupo (VAA) mantêm-se e também a Atlantis continua a estar registada enquanto marca. A diferença é que as peças deixam de aparecer no mercado com esse nome, passando a ser comercializadas com a mesma designação das porcelanas.

O grupo nascido em Ílhavo em 1824, e que há 15 anos se fundiu com a Atlantis, deu o passo que faltava na uniformização comercial dos dois ramos de negócio, a porcelana e o cristal. Às lojas, a mudança vai chegar de forma gradual até ao final do ano, à medida que o stock das peças da antiga marca for sendo escoado. Mas da fábrica de Alcobaça já não saem mais cristais com o nome Atlantis (apenas acontecerá em casos pontuais, até 31 de Dezembro, a pedido de clientes).

“A arte vidreira permanece”

Dias depois da mudança, a cadência dos movimentos na fábrica repete-se. É segunda-feira, três e meia da tarde. Numa ponta do edifício, há copos de vidro a saírem disparados de dentro de uma prensa a altas temperaturas; alguns metros ao lado, homens dão forma a garrafas de conhaque através do sopro à boca da cana; noutra ala, vêem-se homens e mulheres sentados em mesas individuais a desenharem um quadriculado roxo sobre delicadas peças de cristal, onde um artesão há-de passar um disco para fazer baixo relevo com um disco.

Todo o processo tem uma forte componente manual nas várias fases de fabrico, seja na zona quente, onde nascem as peças, seja na zona fria, onde são terminadas. É aqui que os cálices e os copos são cortados à medida, que se cosem peças umas às outras através de raios-ultravioleta, que se dá brilho às peças, se faz o controlo de qualidade e se grava o logótipo da marca antes das peças serem lavadas e embaladas.

Há máquinas que produzem vidros específicos (rolhas, por exemplo), mas a componente manual do fabrico e a “produção artística” foram sendo preservadas ao longo dos anos “por uma questão de diferenciação”, sublinha o director industrial da fábrica, Sérgio Lourenço. “A arte vidreira permanece, nunca tomámos a decisão de automatizar para termos produções de grande escala”, vinca o responsável.

Na fábrica há desde moldadores aos chamados “leva acima” (quem pega numa peça depois de moldada e a coloca na arca de recozimento), passando pelos colhedores do vidro, pelos transportadores de obra, os “oficiais” e “marisadores” (os trabalhadores que têm a responsabilidade de acrescentar uma “marisa”, isto é, mais um pedaço de cristal incandescente a uma peça moldada – uma asa de uma jarra, a base de um centro de mesa, por exemplo).

Na fábrica de Alcobaça, a alteração das marcas da Atlantis para a Vista Alegre é praticamente imperceptível. Não só porque ela acontece no fim da linha de produção, mas também porque implicou ajustar apenas umas pequenas peças metálicas rectangulares (mais pequenas do que uma mão) a partir das quais é gravado o logotipo da Vista Alegre através de um jacto de areia, accionado manualmente através de um botão.

A cerca de uma hora e meia de terminar o dia de produção, há várias linhas de cristal e vidro a funcionarem ao mesmo tempo, desde jarras, cálices, copos altos, garrafas de licor, saladeiras, sempre com a intervenção de mão-humana. Embora nem tudo seja transformado em peças moldadas, a “capacidade máxima de fusão” da fábrica ronda as 20-21mil toneladas: seis a sete toneladas de vidro transparente, duas toneladas de vidro cor, e cerca de 12 toneladas de cristal, o que significa uma capacidade para “produzir uma média de um milhão e 200 mil peças por dia”, resume Sérgio Lourenço.

Soprar a canas

Um operário já prepara o dia seguinte, limpando o “pote”, a zona dos fornos do vidro de cor. Com uma cana, o homem vai limpando o forno para o deixar preparado para mais um dia de produção. As altas temperaturas obrigam-no a estar completamente coberto, dos pés à cabeça. Para se proteger dos 800 graus, enverga luvas especiais para se isolar da temperatura e na cabeça usa um capacete amarelo com uma grande aba que lhe protege os olhos e o rosto, para não olhar directamente para o interior do forno.

Percorrem-se mais uns metros ao lado do “pote” e chega-se a uma zona onde os vidreiros, organizados em pares ou grupos de três, criam garrafas de conhaque em cristal. Fazem-no através da técnica do soprado. Uns estão em cima de uma plataforma a alguns centímetros acima do solo, outros estão mais em baixo. Um homem pega numa cana de aço, mergulha-a numa quantidade de vidro certa (calculada de forma automática) e leva aquele pedaço de cristal incandescente até a um molde de alumínio, que outro homem manipula, sentado lá em baixo no solo da fábrica.

Enquanto este aperta o molde, lá em cima, o colega de pé vai soprando para dentro da cana. Sopra, sopra, sopra. O movimento é contínuo, ao mesmo tempo em que vai rodando a cana com as duas mãos, uma mais próxima do peito, outra da cintura, como se a contorcesse com muita força. E num instante o cristal ganha a forma de uma garrafa de conhaque. Fora do molde, com o cristal ainda mole embutido na cana, outro homem vai arrefecendo algumas partes da peça aproximando uma mangueira de onde vai saindo ar comprido.

Chega depois o momento de fazer crescer a garrafa, acrescentando-lhe uma base, a tal “marisa”. E então a peça segue para uma arca de recozimento, compartimento de vários metros onde os objectos vão arrefecer lentamente durante várias horas.

De uma dessas arcas vêem-se sair, alinhados, centenas de copos de vidro até chegarem às mãos de dois funcionários a quem cabe fazer um primeiro controlo de qualidade.

Uma funcionária pega num copo, coloca-o em cima de uma pequena plataforma giratória à altura dos olhos, roda-a a 360 graus para a ver a toda a volta. Pega no copo e toca o pé do copo numa barra de madeira protegida com papel branco. É a prova dos nove. Se ele estalar e partir, ou simplesmente não estiver em condições, é atirado imediatamente para um monte de vidro partido dentro de uma grande caixa de plástico. Se estiver um pouco oval, mais opaco, num tom mais escuro do que o normal, também fica pelo caminho: já não vai para as lojas (mas se estiver bom em tudo o resto pode ir para a venda outlet).

Olhar para as exportações

Enquanto percorre as várias zonas de produção, o designer Hugo Amado – responsável pelo gabinete de desenvolvimento de produto dos cristais da Atlantis desde 1994 – vai conversando com os artífices que vão polindo pormenores em grandes jarras ou centros de mesa, fazendo marcações em castiçais, banhando a ouro uma peça de colecção ou simplesmente embalando copos de vidro. “Então desapareceu a nossa marca!”, atira um deles, puxando a conversa sobre o fim do nome Atlantis.

Há uma ligação emocional dos trabalhadores ao nome da marca, nascida em 1972, 28 anos depois da fundação da fábrica, que começou a produzir lustres e vidro doméstico e só depois chegou ao cristal, com o nome Crisal.

Agora, a transição para a marca Vista Alegre “tem sido feita com naturalidade”, sublinha o director da unidade. “Muitas das pessoas trabalham aqui há 20, 25, 30 anos, e há uma relação emocional com a marca. Mas do ponto de vista da aceitação da mudança, é claro para toda a população fabril que a uniformização vai no sentido de criar sinergias” para fazer crescer as vendas, sustenta.

A alteração começou a ser pensada em 2010, o primeiro ano em que a Visabeira interveio na gestão do grupo Vista Alegre Atlantis, depois de comprar a empresa em 2009. O reforço da presença nos mercados externos passou para primeiro plano. O grupo tem no exterior 64% das vendas e “para reforçar a internacionalização era preciso apostar na marca com maior notoriedade” fora de portas, justifica o director de marketing do grupo VAA, Nuno Barra.

Logo em 2010 “concluiu-se que tinha de haver uma marca única para concentrar os esforços de comercialização” e o processo foi sendo gradual. Metade da produção da fábrica de Alcobaça segue para exportação.

Hoje, o vidro e o cristal representam 16% das vendas do grupo VAA, o equivalente a um volume de negócios de 11,7 milhões de euros (em 71,8 milhões). Este segmento cresceu no ano passado 21% em relação a 2014, mais do que a média global das vendas da VAA, que subiram 10%.

Quando a Visabeira entrou na empresa, a Vista Alegre e a Atlantis ainda tinham lojas separadas. Ainda antes da fusão, recorda Hugo Amado, a Atlantis tinha 12 mil referências, que foram sendo reduzidas para perto de 3000, “por uma questão de racionalização industrial, para focar as colecções e, nalguns casos, deixar de ter em linha produtos que não são interessantes do ponto de vista das vendas”.

No caso do cristal, França é o mercado externo mais importante, com vendas de 2,7 milhões de euros, metade do volume de negócios da Atlantis no mercado português (5,4 milhões de euros).

Já no total de vendas de porcelanas, faiança, grés, cristal e vidro, Espanha tem uma importância relevante para o negócio do grupo, representando mais de 14% do total (uma fatia de 10,3 milhões de euros). França e Alemanha valem mais de sete milhões cada, seguindo-se Itália, Brasil, Estados Unidos, Inglaterra, Holanda e Angola.

No primeiro trimestre, as exportações representaram 69% das vendas do grupo (acima dos 64% do ano passado) e o objectivo é que cheguem aos 70-72% este ano. A VAA está agora a preparar-se para lançar um projecto de enologia, relacionado com a produção vidreira. Mas mais pormenores Nuno Barra não revela – nem o que aí vem, nem o calendário para lançar o projecto no mercado, porque, diz, ainda falta a fase da implementação.

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