28 menos 1 (R.U.) não é o mesmo que 27

A saída do Reino Unido da União Europeia é uma machadada tendencialmente mortal neste projecto de uma construção europeia aos soluços

O meu palpite de quarta-feira estava errado.  Veio a acontecer o costume em consultas ao povo britânico. As últimas sondagens estavam erradas. Mesmo assim, os primeiros comentários teimaram em aceitá-las como ciência certa e as pesquisas feitas por instituições financeiras alimentaram o pequeno surto de febre altista da libra esterlina que chegou ao pico de 1,5 USD. A primeira saída que se impõe no Reino de Sua Majestade é, pois, a das instituições de sondagens. Com justa causa.

Quando se esperaria que o Bremain vencesse “by default”, o Brexit atingiu 52% de uma votação, que atingiu um notável valor de 72%.  O Reino Unido (RU) está agora diante de um salto para o desconhecido, sem que saibamos, por ora, qual o pensamento estruturado para o “day after”? Venceu a tese de Paul Valéry: “tenho medo do conhecido, mais do que do desconhecido”.

Remain achou que a táctica do quarto escuro seria suficiente. Apenas a artilharia do medo, sem argumentação solidamente racional das vantagens de permanecer na União. Quis beneficiar do voto do conformismo, administrando uma boa dose de benzodiazepinas.

A saída do Reino Unido da União Europeia é uma machadada tendencialmente mortal neste projecto de uma construção europeia aos soluços, vivendo da sistemática procrastinação dos problemas e da palavrosa arte de mudar a aparência para tudo se manter na mesma. Será agora uma Europa amputada de um dos seus membros e com mais mazelas no seu disforme corpo. Nos directórios europeus, depois da decepção, tudo se fará para voltar à hipocrisia em tom laudatoriamente voluntarista. Será que esta Europa comatosa vai trocar o Reino Unido por uma aceleração do federalismo? Creio que a crise identitária deste caminho europeu está mortalmente ferida. A Europa do pensamento único e do monolitismo centralizador foi derrotada. A ambivalência “construção/desconstrução” europeia vai acentuar-se num jogo de mosaicos sem norte (ou com norte a mais, geográfica e politicamente falando). Foi também (embora não apenas) este modo de “martelar” a União que produziu e reforçou nacionalismos exacerbados, partidos radicais, défices democráticos, domínio financeiro sobre a política.

Os princípios fundacionais da subsidiariedade e da proporcionalidade esfumaram-se nas contradições e nos jogos de poder. O “processo de criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa, em que as decisões sejam tomadas ao nível mais próximo possível dos cidadãos, de acordo com o princípio da subsidiariedade” (preâmbulo do Tratado da União Europeia) foi – literalmente – para inglês ver.

Cameron comprou em Bruxelas o que julgou suficiente para convencer os eleitores diante de um partido fragmentado. Negociou excepcionalidades europeias para uso doméstico. Vai ficar na história pelas piores razões. Corbyn não sabe o que fazer com a falta de entusiasmo de que deu fartas provas. A Escócia não se aguentará no reino de Sua Majestade e aí virá um novo referendo independentista. A Irlanda do Norte é outro bico-de-obra. O vencedor, Boris Johnson é uma incógnita despenteada, mas que, agora ou depois, vai chefiar a revolta naBounty. O outro vencedor Nigel Farage tudo fará para desbloquear o travão do sistema eleitoral britânico. E, por essa Europa fora, a desintegração nalgumas zonas é, agora, menos ficcional.

O problema não é apenas passar de 28 para 27 estados-membros. É, também, o precedente de saída oferecido aos 27. Daí a importância de como se vai efectivar a saída do RU e que “risco moral” vai gerar no seio da União Europeia.

Esta vitória do Brexit é uma estalada no pensamento mercantil de quem achava que, com euros e opting-out à discrição tudo se resolveria com mais ou menos dificuldade. Desta vez, sem poder usar o truque habitual de repetir referendos até o povo chegar ao resultado previsto e preferido na Europa, como se fez e abusou na Irlanda, Dinamarca, Holanda.

Os britânicos recordaram-nos que Europa e União Europeia não são necessariamente a mesma coisa. Que entender a especificidade de cada país ou nação deveria ser a regra. Que desvalorizar o papel dos parlamentos nacionais substituídos muitas vezes, por instâncias sem rosto é mandar às malvas a “Europa dos cidadãos” (e logo o mais cioso da sua soberania, como é o britânico…).  Que deixar avançar demasiado o poderio alemão (com o inefável “side-car” francês) conduziria a um indisfarçável mal-estar na Europa.

Para Portugal, e nos próximos tempos, a saída do Reino Unido não é boa notícia . Para Portugal e para os países da “2ª Liga europeia”. Para muito do que esta construção tem, na prática, de monolitismo centralizador e de pensamento único, o Reino Unido era um travão à frente do pelotão dos países com menos poder.

Ainda é muito cedo para especular sobre o que vai acontecer no plano económico e nas consequências sociais. Muito vai depender da negociação para a saída (quem a fará do lado britânico e do lado europeu?). Embora prevista nos Tratados, esta saída não vem nos manuais. No curto-prazo, o nervosismo dos mercados e a ansiedade das pessoas vão ser determinantes. No plano estratégico, nada sabemos, se é que alguém sabe. Uma coisa é desenhar essa relação para quem nunca tendo estado na União, outra é negociá-la depois de uma saída que nunca acontecera, ainda por cima tratando-se de um Estado e de uma economia mais fortes e mais representativas da Europa e do Mundo.

Uma curiosidade: a língua inglesa, língua franca de hoje, vai deixar de estar representada na UE (haverá a relativa excepção da Irlanda cujo verdadeiro idioma é o gaélico)! E esta hein?

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