“É fácil culpar a imigração por problemas que o Reino Unido tem há muito tempo”

Southampton, na costa Sul de Inglaterra, é a cidade do Reino Unido com mais imigrantes polacos fora de Londres. Na zona de Shirley sentem-se em casa, mas vizinhos dizem que o país não pode continuar a receber mais gente.

Foto
Há 25 mil polacos em Southampton, a zona de maior concentração desta comunidade fora de Londres TOBY MELVILLE/REUTERS

O argumento, nas suas inúmeras variantes, repete-se a cada passo nas ruas, a cada linha do noticiário político, a cada minuto nos debates que antecedem o referendo britânico à União Europeia. “Estamos assoberbados”, “esta imigração sem controlo não pode continuar”, “somos uma minoria no nosso próprio país”. O dedo pode não estar em riste, mas o alvo deste mal-estar crescente são os imigrantes europeus – os de Leste quase sempre –, como os milhares de polacos que refizeram as vidas em Shirley, bairro na periferia de Southampton onde, reza o mito local, “já não se ouve falar inglês”.

Os estudos económicos podem contrariá-lo (e contrariam), os responsáveis políticos podem desmenti-lo (mesmo que poucas vezes o façam), mas ali em Shirley High Street, um correr de lojas onde os negócios com letreiros e montras em polaco concorrem com o comércio barato, pubs e organizações de caridade, o sentimento parece entranhado.

“Há demasiadas pessoas na nossa pequena ilha, um dia destes afundamos”, diz, rindo, Margaret, que trabalha numa loja de produtos em segunda mão da Oxfam, uma das principais fontes de financiamento da ONG britânica. Maguie, como lhe chamam os colegas, tem 67 anos e nunca votou – “se eu achasse que adiantava alguma coisa votava” – e admite não saber muito sobre a UE ou sobre o que pode mudar com o referendo desta quinta-feira. Mas garante que “as coisas nunca estiveram tão más, nem nunca houve tão pouco trabalho” e acredita que muito se deve aos novos vizinhos. “Os meus sobrinhos dizem-me que na Internet há muitos trabalhos, mas quando vão procurá-los já foram dados a outros”. Os outros, percebe-se, são os imigrantes.

Southampton, na costa Sul de Inglaterra, não é Londres. É uma cidade de 250 mil habitantes profundamente ligada ao mar – foi das suas docas que em 1912 o Titanic se lançou ao Atlântico e é de lá que hoje continuam a partir alguns dos maiores cruzeiros do mundo. Uma cidade com uma economia dinâmica, mas de média dimensão, que desde o maior alargamento da história da UE, em 2004, viu chegar milhares de pessoas vindos do Leste da Europa – as últimas estimativas apontam para 25 mil polacos, o que faz de Southampton a zona de maior concentração desta comunidade fora de Londres. Em todo o Reino Unido são perto de 800 mil pessoas.

E Shirley é a sua Little Poland na cidade, o bairro onde milhares moram e onde muitos outros abriram os seus pequenos negócios, fazendo uso do empreendedorismo que os britânicos reconhecem a estes recém-chegados. Em supermercados como o Malinka ou o Baltic Foods, compram a comida que lhes ajuda a matar saudades da terra natal. Queijos, carne, doces, cerveja… e também produtos das marcas internacionais que só diferem dos que se vendem nas outras lojas por terem rótulo em polaco.

Mas há também agências de recrutamento, lojas de electrónica ou cabeleireiros onde quem entra sabe, antes de cruzar a porta, que só precisa de falar a língua materna. “Não falo muito bem inglês”, diz timidamente Monica Szczypkowski quando acaba de cortar o cabelo a um rapazinho polaco que veio acompanhado pela mãe e a avó – são cada vez mais os avós que chegam ao país para cuidar dos netos que já aqui nasceram, enquanto os pais trabalham. Monica chegou ao Reino Unido em 2011 e o filho, hoje com sete anos, é uma das razões que a levam a não pensar num regresso à Polónia. “A vida aqui é muito melhor”, diz, no interior do pequeno salão de cabeleireira que abriu há três anos e onde, garante, “também vêm clientes inglesas”.

Polacos preocupados

Uma sondagem feita junto de mais de cinco mil polacos a residir no Reino Unido, divulgada no domingo pelo jornal The Observer, concluía que quase metade (47,4%) quer continuar no país mesmo que os eleitores britânicos votem a favor da saída da UE. E a estes juntam-se outros 26% que também só admitem regressar se a estadia lhes for negada. Um em cada três acrescenta que tem a intenção de pedir cidadania britânica, seja qual for o resultado do referendo.

Mas o inquérito, realizado pelo instituto polaco IBRiS, revela também que 39% dos inquiridos temem “um potencial aumento das atitudes negativas em relação aos imigrantes se o ‘Brexit’ vencer”. E apesar de três em cada quatro se sentirem aceites no país, mais de um terço “acredita que os polacos, enquanto grupo nacional, são hoje menos bem-vindos”.

Kamila Zuc, funcionária do supermercado Baltic Food, está no Reino Unido há 11 anos e garante que nunca se sentiu alvo de atitudes racistas. Tem um filho de sete anos que frequenta a escola local, ela fala fluentemente inglês, diz que tem amigos de várias nacionalidades – “pessoas são pessoas, não penso nelas como polacas ou inglesas” – e regressar é coisa que nem lhe passa pela cabeça. “A minha vida está aqui”, assegura, explicando que prefere não se preocupar com aquilo que a saída do Reino Unido da UE pode mudar na sua vida.

É fácil ouvir nas ruas de Southampton os argumentos anti-imigração que os políticos a favor da saída da UE repetem nas televisões há semanas. Mas são poucos os que querem dar a cara e o nome por um sentimento que, insistem, nada tem a ver com racismo. “Não somos contra os imigrantes, todos temos sangue imigrante. Mas eles são demasiados”, explica uma voluntária da Igreja de São Bonifácio, um templo católico a meio caminho entre a Shirley High Street e a Shirley Road, um longo percurso pontuado por negócios polacos, mas também indianos, chineses e até um café português. Uma amiga ao seu lado conta que várias igrejas de Southampton foram cedidas à comunidade polaca, mas este ano numa das paróquias “as crianças fizeram a primeira comunhão todas juntas e foi preciso organizar duas cerimónias porque não cabia toda a gente”. “A lista das crianças polacas ocupava duas folhas.”

Mas há também quem não cale a revolta. “Sinto-me uma minoria na minha própria cidade. Se andar comigo em High Street só ouve gente a falar polaco”, diz Paul Levy, um jovem de cabelos ruivos e um repúdio muito forte pela UE. “É uma organização criada pelo grupo de Bildenberg”, que “não é eleita, não é obrigada a apresentar contas” e que quer inundar a Europa “de pessoas que se dizem refugiados, mas o que querem são subsídios”. Diz que perdeu “cinco empregos por causa dos polacos” – “quando lá chegava já os tinham contratado” – e não tem “dúvidas que “muitos deles têm de ir embora”. Tem colegas de trabalho polacos, mas nenhum amigo: “Deixaram de o ser quando lhes disse o que pensava deles”.

Sem efeitos adversos

Em Londres, no gabinete da London School of Economics (LSE) onde há anos estuda os efeitos da imigração, Jonathan Wadsworth admite que “é inegável que o número de imigrantes aumentou muito no Reino Unido” desde a adesão dos países de Leste e a crise económica nos países do Sul. Nos últimos anos mais ainda – em 2013 estavam a trabalhar no país 1,4 milhões imigrantes de outros países da UE, agora são já mais de dois milhões.

“Mas quando olhamos para as estatísticas e avaliamos os efeitos, torna-se difícil verificar qualquer efeito adverso”, afirma o economista, co-autor de uma análise publicada na LSE Bussiness Review, segundo a qual “a imigração europeia não prejudicou significativamente os salários, o emprego ou os serviços públicos”. “Longe de ser um ‘mal necessário’ que temos de suportar para termos acesso ao comércio e investimento gerado pelo mercado único, a imigração tem, na pior das hipóteses um efeito neutro e, na melhor, é mais um dos benefícios económicos da presença na UE”, alega o estudo.

Ao PÚBLICO, Wadsworth sublinha que “a média dos imigrantes europeus tem um nível de instrução acima da média dos britânicos”, o que aumenta a produtividade, e recorda que as suas contribuições em impostos e descontos superam em muito o que recebem em apoios sociais. “Eles são contribuintes líquidos do sistema fiscal e as receitas que geram vão para os cofres do Governo, que as pode usar para investir na habitação, nos serviços públicos, ou reduzir a austeridade”. “Sim, as pessoas esperam mais tempo por uma operação, mas não é por causa dos imigrantes. É porque o serviço nacional de saúde precisa de mais recursos” e isso, acrescenta, “é uma escolha política”.

Wadsworth garante também que as estatísticas negam a ideia de que o aumento da imigração tenha feito baixar os salários ou aumentado o desemprego – “à medida que a população aumenta a procura também e as duas coisas equilibram-se”. Conclusões que, admite, são “muito diferentes da percepção que a maioria dos eleitores tem da realidade”, muito por causa do discurso político. “O ritmo de mudança da sociedade tem sido muito rápido e o aumento da imigração é muito visível. Logo, tornar-se fácil culpar a imigração por problemas que o Reino Unido tem há muito tempo”.

Um muro de tijolos

Uma conclusão a que também já chegou Ulla Schaffler, gestora do projecto social SOS Polonia, fundado há mais de dez aos em Southampton. “Toda a gente conhece um imigrante, por isso é fácil culpar a imigração por todo o tipo de problemas”, diz, sentada no rés-do-chão de um edifício junto às docas, onde ela e outros voluntários ajudam os recém-chegados – polacos, mas também checos, eslovacos ou búlgaros – a lidar com a burocracia britânica ou a resolver problemas com os senhorios ou os empregadores.

Os que ali acorrem falam pouco ou nenhum inglês, mas Schaffler nega as acusações de que a comunidade não faz um esforço para se integrar: “É claro que se eu não falar inglês é mais fácil ir a uma loja polaca. Mas essa acusação já foi feita contra outras comunidades. Agora são os polacos, porque somos muitos”.

Ainda assim, acredita que quando o referendo passar e as atenções se viraram para outro lado, “a discussão sobre a imigração vai perder intensidade”, até porque, insiste, “as pessoas só estão cá porque há emprego”. “Eu estou cá desde 2005 porque o serviço nacional de saúde publicou um anúncio a recrutar técnicos de enfermagem e o meu marido foi escolhido”, explica Schaffler, acrescentando que “o que as agências de trabalho dizem é que os britânicos não querem fazer os trabalhos que os imigrantes fazem”. “Se nos fossemos embora, quem apanhava o lixo das ruas, quem limpava os hospitais, quem tratava dos idosos?”

Há outra imigração, mais qualificada. Mas numa das várias agências de Shirley Road o que se anuncia são canalizadores, trabalhadores fabris e de limpeza, por salários que variam entre as 6,70 e as 14 libras à hora. “As pessoas que apoiam a saída não sabem do que falam. Acham que se ganharem, no dia seguinte vai mudar tudo”, indigna-se Dan Clayton, voluntário na loja da Oxfam. Convicto apoiante da permanência, lembra aos colegas que sem a livre circulação de pessoas o país teria de pagar para exportar os seus produtos. “Mas as pessoas aqui preferem dar ouvidos à propaganda da direita. Acham que se o ‘Brexit’ vencer vão construir um muro de tijolos à volta de Inglaterra.”

Sugerir correcção
Ler 2 comentários