Médicos Sem Fronteiras viram costas a dezenas de milhões em fundos europeus

Organização diz que acordo com a Turquia para conter fluxo de refugiados "é vergonhoso", enquanto líderes europeus lidam com uma estratégia em colapso.

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Médicos Sem Fronteiras operam barcos de resgate e dão apoio humanitário aos migrantes do Mediterrâneo REUTERS/Darrin Zammit Lupi
Barco de resgate dos Médicos Sem Fronteiras ao largo da Itália.
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Barco de resgate dos Médicos Sem Fronteiras ao largo da Itália. GABRIEL BOUYS/AFP

A organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF) decidiu recusar dezenas de milhões de euros em fundos europeus como protesto contra o acordo de contenção de refugiados e imigrantes assinado com a Turquia. Há semanas que a organização discutia o que fazer em resposta à estratégia europeia para lidar com a crise no Mediterrâneo, que todos os grupos humanitários de relevo condenam e que fez com que a própria agência de protecção de refugiados das Nações Unidas abandonasse algumas das suas tarefas nas ilhas gregas. A decisão foi anunciada esta sexta-feira em Bruxelas.

O protesto da MSF não é diferente do das outras agências. A organização entende que a estratégia de devolver à Turquia todos os imigrantes ilegais, requerentes de asilo chumbados e refugiados sírios estica a lei internacional ao limite e pode impedir que milhares de pessoas tenham o devido acesso a mecanismos de protecção. O acordo parte do princípio de que a Turquia é um país seguro e tem um sistema jurídico funcional, apesar das dezenas de relatos de abusos, maus-tratos, recusa ilegal de asilo e até homicídios na fronteira com a Síria à mão de soldados de Ancara.

“Há vários meses que a MSF tem alertado para a vergonhosa resposta europeia, centrada na contenção de pessoas em vez de na garantia de assistência e protecção de que elas precisam”, explicou esta sexta-feira o secretário-geral da organização, Jerome Oberreit: “Será que a única resposta da Europa aos refugiados é a de os reterem em países dos quais estão desesperados por fugir? Mais uma vez, o principal objectivo da Europa não é o de dar a melhor protecção possível às pessoas, mas sim o método mais eficiente de as manter longe.”

O acordo entre a UE e a Turquia é imperfeito mesmo aos olhos dos líderes europeus, que, em público, dizem que está a funcionar como o pretendido, mas em privado admitem estar a pensar em alternativas, tendo em conta os problemas que se têm acumulado. O grande trunfo de Bruxelas está na queda abrupta no número de novas chegadas por barco à Grécia: antes do acordo, desembarcavam quase 1500 pessoas todos os dias nas costas gregas; hoje, esse número está mais perto das 50.

Mas as falhas humanitárias, legais e logísticas são evidentes. O objectivo por esta altura seria já ter deportado praticamente todos os imigrantes ilegais e requerentes de asilo chegados depois do dia 20 de Março e já estarem cumpridos os preceitos fundamentais do acordo: ou seja, Ancara receberia uma parte dos 6000 milhões de euros prometidos em assistência humanitária e o fim dos vistos de viagens para cidadãos turcos na União Europeia. Mas deu-se o imprevisível: o Presidente turco demitiu o seu primeiro-ministro europeísta e insiste agora em não obedecer às exigências de Bruxelas para modificar a sua lei de antiterrorismo para conseguir a liberalização das viagens.

Muito graças ao impasse político, as autoridades gregas e turcas quase não comunicam e os ferries estão praticamente parados. Só 562 pessoas foram transferidas para a Turquia depois do dia 20 de Março, quase todos imigrantes paquistaneses que não se opuseram à viagem. O acordo prevê que por cada sírio retirado da Grécia, a União Europeia receba um refugiado sírio vindo da Turquia, mas até agora, em troca dos 411 sírios recebidos na Europa, a Turquia acolheu apenas 31.  

Tudo isto contribuiu para que se aglutinassem quase 8500 pessoas na Grécia em limbo. Vivem em campos de detenção sobrelotados, para onde são enviadas automaticamente depois de desembarcarem — algo que as Nações Unidas se recusaram a aceitar, reduzindo a sua participação nesses centros a um mínimo. Em muitos destes locais não existe água ou saneamento, é comum avistar-se cobras e ratos e multiplicam-se tentativas de suicídio de requerentes de asilo aterrorizados pela ideia de regressarem à Turquia.  

É lá que centenas de pessoas devem esperar uma decisão sobre os seus pedidos de asilo, mesmo que o sistema judicial grego esteja lento e atolado de processos, e que até agora tenha sido implacável em matéria de recursos: dos 57 casos de asilo que os tribunais quiseram recusar em primeira instância, só dois prevaleceram. Para corrigir esta situação, o Parlamento grego decidiu alterar esta semana dois dos júris do comité de recursos.

“O acordo entre a União Europeia e a Turquia cria um precedente perigoso para outros países que acolhem refugiados, enviando uma mensagem de que o cuidado de pessoas que foram forçadas a fugir de suas casas é opcional e de que podem pagar para não ter de dar asilo”, argumenta Jerome Oberreit. “O acordo nada faz para encorajar que os países vizinhos da Síria, que já acolhem milhões de refugiados, abram as suas fronteiras àqueles que mais necessitam.”

A MSF é uma das organizações mais importantes na acção humanitária no Mediterrâneo e Grécia. Só ao longo do último ano, o seu barco de socorro resgatou mais de 24 mil pessoas e é devido ao seu apoio que o acampamento improvisado por milhares de pessoas na fronteira com a Macedónia operou com algum grau de assistência humanitária. A organização diz que o corte de financiamento não vai afectar as suas operações, mesmo que se arrisque a perder mais de 60 milhões de euros no próximo ano, o montante que recebeu em 2015 de fundos comunitários, países da UE e Noruega, que é aqui incluída por integrar o espaço Schengen e a polícia europeia de fronteiras, Frontex. 

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